Cândido Grzybowski
Sociólogo, diretor do Ibase
No contexto da crise política em que estamos mergulhados, tenho refletido e insistido na necessidade estratégica de reinventar a democracia desde aqui e agora para que outro amanhã seja possível. Isto exige que criemos, como cidadania ativa e com perspectiva de justiça social e sustentabilidade socioambiental, muitas condições novas, mas em especial: 1) uma prática questionadora de situações históricas concretas em que vivemos, de modo particular por amplos grupos populares, tanto de exclusão, desigualdade social e discriminação, como de destruição das bases naturais do viver, onde direitos iguais não existem, relações e estruturas sociais oprimem, a emancipação política é negada; 2) um ideário mobilizador capaz de disputar hegemonia no sentido de projeto de sociedade com sonhos, princípios e valores, rumos e propostas agregadores de sujeitos coletivos históricos e que o tomam como sua motivação maior; 3) uma inspiração que nasce das lutas reais existentes, das resistências e emergências concretas da cidadania aqui e lá, econômicas, socais e culturais, nos seus territórios de vida e trabalho.
A tarefa é gigante, envolve desafios e persistência, muita vontade política e determinação, com ousadia e criatividade. Mas é fundamental que reconheçamos que já estamos metidos nela irremediavelmente, ela nos ocupa no cotidiano, onde estejamos. Reinventar a democracia substantiva e transformadora, fundada em novas bases, não é começar do nada, de jeito nenhum. É algo que está aí, já acontecendo na sociedade. O contexto de crise política atual, por exemplo, despertou e, sobretudo, conectou resistências. Como já disse, transformamos o momento de crise em nossa ágora cidadã, cívica e republicana, voltando a fazer política e a discuti-la como o pão nosso de cidadania no dia a dia. Mais importante ainda é que redescobrimos força em nossa diversidade, mesmo angustiados pela adversidade do momento e a descoberta do enorme poder de forças políticas que se opõem a tudo o que pensamos e defendemos, mas com quem é inevitável conviver como condição do viver democraticamente.
Dado isto tudo, penso que deixar de mirar tanto o “planalto” e olhar mais para a “planície” pode ser um caminho inspirador e gratificante nas tarefas que temos pela frente. O momento inicial é de fortalecer nossas “trincheiras”, não no sentido militar, mas no sentido político cidadão de nos fortalecer como cidadania que tem condições e posições essenciais a preservar, e garantindo que, fortalecidos, avancemos amanhã. Quero dizer com isto que precisamos fazer um verdadeiro trabalho de cartografia social das resistências, sementes por assim dizer, portadoras de democracia e de futuro. Uma tarefa política fundamental é extrair o “bom senso” – bem no sentido de Gramsci – do senso comum que move as resistências cidadãs nos mais diferentes territórios. O revolucionário transformador está aí. Ao se somar a outras resistências, ao formar redes que penetram profundamente o tecido social e lhe dão sentido, o processo de constituição de novos sujeitos coletivos democráticos se porá em curso.
Tudo o que escrevi acima tem a ver com algo muito concreto e simples, mas altamente inspirador, que vivi pessoalmente no último mês. A crise correndo solta em Brasília, muita mobilização cidadã pró e contra impeachment, muita fumaça e confusão alimentadas por uma mídia a serviço de poderosos interesses privados e nada comprometida com a informação de qualidade, aquela patética e nada republicana votação na Câmara, enfim, no meio de tudo isto tive oportunidade de estar por duas vezes no Complexo do Alemão, emblemático conjunto de favelas a por em questão o que somos como cidade do Rio de Janeiro. Numa das vezes, em 9 de abril, estive acompanhando alguns visitantes estrangeiros, também ativistas cidadãos. Na segunda vez, em 11 de maio, participei de uma reunião mais ampla organizada pelo Instituto Raízes em Movimento, constituído por militantes de cidadania ativa do próprio Complexo do Alemão, com 15 anos de história.
Sei que as resistências em favelas tem longa e riquíssima história de cidadania, produzida por diferentes grupos favelados em seus próprios territórios, enfrentando todo tipo de segregação, dominação e ocultamento. Devemos a tal resistência o mote “Favela é Cidade”, que muda inteiramente a perspectiva democrática do pensar tanto as favelas como, sobretudo, a cidade em si. Afinal, onde está o problema da cidade? Nas favelas ou na cidade dominante que não as reconhece como forma de cidade? O modelo “normal” de cidade considera as favelas como “subnormais”, algo a ser segregado, ocupado pela polícia como território inimigo e, se possível, removido para bem longe.
Para uma agenda de renovação radical da democracia desde o local, de baixo para cima, neste contexto político em que vivemos, precisamos olhar com mais atenção às resistências populares nas favelas no que tem como inspiração e força mobilizadora de cidadania. Nas minhas duas recentes visitas ao Alemão, tive oportunidade de ver aí uma espécie de ateliê prático da cidadania e da democracia para criar uma sociedade justa e sustentável. Só para lembrar, o Complexo do Alemão é um conjunto de favelas com mais de 120 mil habitantes. O território foi militarmente ocupado por UPP – Unidade de Polícia Pacificadora que, mais do que trazer paz e segurança como direito de cidadania, impôs uma lógica de quartel ao viver no Complexo do Alemão, com proibições e toques de recolher, tudo em nome do combate ao tráfico de drogas e à violência. No meio de tal “mal-estar social”, o Raízes em Movimento anima iniciativas e processos muito simples, mas altamente portadores de resistência e cidadania, que permitem reapropriar de forma republicana o seu próprio espaço, o seu território, de forma a apontar outro modo de viver aí.
Está em curso no Complexo do Alemão algo como o resgate dos “comuns”, territoriais e culturais, fundamentais para se viver com sentido e perspectivas. Todas as inciativas do Raízes em Movimento acontecem porque envolvem quem mora aí, como seu território cidadão e espaço simbólico de vida. O processo de “comunização” – do tornar “comum” o que é indispensável para o viver de todo mundo -, tem no centro a rua, as vielas, os caminhos, as conexões que permitem os encontros e a criação do sentido de ser parte e viver junto. O cineclube é na rua, o “Vamos desenrolar” (inciativa que junta produtores acadêmicos de saber e resgate da história em diálogo com os saberes de moradores locais, seus verdadeiros sujeitos e depositários da cultura comunitária local) acaba num grande encontro na rua. Um movimento de grafiteiros locais toma as ruas com a sua criatividade, criando um ambiente lúdico de pensar o lugar. Há um resgate de áreas para praças e jardins “comuns”. Anualmente, todas as iniciativas culminam no evento “Circulando”, que toma as ruas como espaço de encontro entre grupos de dentro e de fora do Complexo, como oficina de ideias e troca de saberes, como palco de celebração e dança, com produções locais. Enfim, tudo simples e, ao mesmo tempo, tudo estrategicamente transformador de práticas e visões, de grande potencial mobilizador.
Conectar experiências assim pela cidade inteira pode ser a trincheira simbólica da cidadania ativa capaz de reinventar a democracia e se reinventar a si mesmo, desde os territórios locais, o nosso endereço no Rio, no Brasil e no mundo. Penso que é chegada a hora para criarmos um ateliê de cidadania para pensar as resistências que praticam e vivenciam a cidade, especialmente aquelas que trazem o “comum” como núcleo estratégico e direção a seguir. Uma agenda cidadã para o nosso Rio de Janeiro e Região Metropolitana não só é necessária, mas é possível e tem muitas raízes já bem implantadas nos territórios diferenciados em que vivemos.