Cândido Grzybowski
Sociólogo, do Ibase
Estamos vivendo um processo de perda total de confiança na política e nas instituições públicas a ponto de afetar as condições mínimas de convivência e de compartilhamento, indispensáveis para que todas e todos, em nossas desigualdades e contradições, oposições e diferenças, nos sintamos parte da coletividade Brasil. Chegamos a um ponto crítico, potencialmente destrutivo, capaz de nos levar a um longo período de total descontrole e violência, a formas de fascismo. O cotidiano já é marcado pelo medo e por atos de barbárie.
Por que isto tudo está ocorrendo? Qual é a sua causa? De um ponto de vista mais abrangente, o problema central é o esgotamento da onda democrática dos últimos 30 anos, que permitiu conquistas importantes em termos de direitos de cidadania e políticas sociais minimamente inclusivas. Tal esgotamento se deve em grande parte ao predomínio de diferentes estratégias políticas, pela direita e pela esquerda, de conciliação de classes, sem rupturas transformadoras da estrutura social e do desenvolvimento capitalista entre nós. Conjunturalmente, a causa mais próxima foi o golpe do impeachment, que destituiu ilegitimamente um governo eleito pelo voto da cidadania. Na armação do golpe antidemocrático se juntaram as forças reacionárias, conservadoras e oportunistas do Congresso, a grande mídia privada e setores autoritários do poder judiciário que temos.
A cada dia somos invadidos por notícias dos bastidores da política e do que vem se armando contra a democracia e os direitos de cidadania. Entre prisões coercitivas, delações premiadas, vazamentos seletivos, golpes baixos e muito tráfico de influências, pagas com monumentais quantias de dinheiro, em contas no exterior ou em malas de dinheiro vivo, vamos descobrindo o quanto o espaço da política e nossos chamados representantes estão envolvidos nas maracutaias do negócio que enclausurou a política, bem comum democrático. Que legitimidade tem o sistema político para tratar do bem público e comum do Brasil? Nem falo do fantoche e corrupto governo Temer. O problema é mais de fundo, está incrustado no sistema político, pouco ou nada mudado pela Constituição de 1988. Na verdade, herdamos um sistema político e partidário moldado no final da ditadura militar, com pequenos ajustes que não afetam a essência da representação e que geram um Congresso maleável a interesses de ocasião.
A crise não só é grave, ela fugiu dos parâmetros institucionais de ação política. Estamos diante de um verdadeiro impasse. O problema de fundo é que a política está “colonizada”, literalmente, por interesses privados das grandes corporações econômicas e financeiras. São elas que, com o poder de seu capital, compram políticos, leis e favores. Não é, como ainda querem passar para nós a imprensa e o Judiciário, uma questão limitada a esta ou aquela força política. Pelo contrário, é o modo de operar da nossa política, infelizmente. A colonização da política por empresas é o câncer maligno que cria metástases na democracia e que pode matá-la. Na base de tudo a conciliação de classes praticada através de uma governabilidade de coalizão de gatos e ratos.
Resistir é preciso e até inevitável. Mas qual é o nosso horizonte estratégico? As trincheiras de resistência são apenas uma opção tática, não apontam a transformação política que precisamos buscar. Não podemos simplesmente ficar tentando mitigar o dano. Precisamos pensar em formas de refundar democraticamente o país e nos engajar com determinação em tal tarefa.
Na quarta feira passada, no dia das bombásticas revelações da delação dos donos da JBS, participei de uma discussão interna, no Ibase, sobre as mais recentes avaliações e propostas da Plataforma pela Reforma Política. O debate foi antes de sabermos do que estava ocorrendo em Brasília. Visualizamos a importância de pensar que a reforma da política está longe de ser contemplada pela proposta em pauta atualmente no Congresso. Também não pode ficar limitada à política como praticada até aqui. Uma reforma da política deve contemplar o sistema partidário e eleitoral, referendos e plebiscitos, formas de exercício da democracia, especialmente a direta e a participativa, sem dívida. Mas isto é apenas uma parte. Política é, também, o espaço público da informação e do debate, dominado entre nós por uma mídia privada e monopolizada. Precisamos de uma mídia como espaço democrático de construção de imaginários, projetos e agendas políticas para o país. E o terceiro pilar de uma verdadeira reforma da política passa por significativas mudanças no poder judiciário, para que seja árbitro a serviço do bem público democrático e não ator político autocrático e autorregulado como atualmente. Minha posição pessoal no debate é que só através de uma Constituinte Soberana poderemos reformar a política, jamais pelo Congresso que temos.
A conjuntura criada pelas novas revelações, que põem o governo Temer por terra, a meu ver, abrem o momento para se criar um forte movimento por uma Constituinte com a tarefa de refundar politicamente o país. Não vejo saída conciliadora possível no momento. Ou criamos um movimento irresistível capaz de exigir uma Constituinte soberana ou nos afogamos ainda mais numa crise política ingovernável. Precisamos encontrar uma forma de nos sentar à mesa para além dos pequenos interesses políticos e partidários e libertar a política das amarras que os grandes interesses privados estabeleceram. Política não é negócio! Política é bem comum! Desmercantilizemos a política! Constituinte Já!
Rio, 20/05/17