Cândido Grzybowski
Sociólogo, presidente do Ibase
Estamos naquele impasse quase total, de absoluta incerteza. Experiência única para a maioria no mundo inteiro. Mas, ao mesmo tempo, trata-se de uma vivência compartida entre todas e todos, um momento de extraordinária tomada de consciência de destino comum planetário. Nunca vivenciamos tal situação de total dependência, tendo os mesmos medos e incertezas sobre o amanhã e o depois de amanhã, ao menos nós das atuais gerações. E, no entanto, desperta uma profunda sensação de direito coletivo à vida, com um futuro a sonhar e construir, como condição do próprio viver. Eis o desafio!
O Covid-19 fez a ficha cair. Não estamos respeitando os limites naturais do Planeta, nossa casa comum, e nem pondo os comuns como direitos coletivos no centro de nossa organização social. O nosso problema de fundo é o modo de produzir e viver, sem nenhum respeito à integridade da nossa Mãe Terra, da qual toda vida depende. E ela é extremamente maravilhosa em sua capacidade de nos oferecer condições indispensáveis do viver. No entanto, elas mudam de um lugar a outro, de um território a outro. Ou seja, viver com sustentabilidade e resiliência na troca com a natureza e compartindo entre todas e todos é saber interagir com esta diversidade, territorialmente estabelecida e insubstituível em sua especificidade de nosso comum. Somos parte de uma incontornável rede de mutualidade no planeta como um todo, compartindo um mesmo destino comum. Mas é nos territórios em que vivemos que tais relações adquirem concretude e demarcam nosso cotidiano, suas grandes possibilidades, mas também as condições a respeitar.
Tenho pensado nestas questões durante os longos dias estranhos de confinamento. À anormalidade de agora, porém, se contrapõe uma normalidade ecologicamente destrutiva e socialmente excludente que imperava soberana como capitalismo econômico e financeiro globalizado, imposto como modelo civilizatório pelos poderes dominantes estabelecidos. As grandes corporações em busca de seus interesses privados de acumulação, controlando e apoiando-se nos Estados, cobrem o mundo inteiro com seus tentáculos de exploração, e nos oferecem uma insustentável globalização neoliberal como a único modo possível de organizar a vida na atualidade. Voltar a tal normalidade assusta mais do que a pandemia e suas ameaças. Afinal, para se “restaurar” a velha normalidade o pandemônio da barbárie deve prevalecer e a pandemia continuar ceifando vidas.
Chama a atenção nas análises a respeito dos cenários sobre o amanhã, mesmo de muitos que se colocam à esquerda no espectro político, aquelas que não conseguem visualizar nenhum sinal de possível mudança, mas somente algo do mesmo capitalismo piorado e levemente melhorado, com mais atenção social dos Estados. Claro, são olhares analíticos, até bem fundamentados quanto ao diagnóstico das forças dominantes do sistema atual, seu enorme poder e seus movimentos. O estranho é não olharem ou até darem as costas para as “emergências” e “resistências” que brotam no chão das cidadanias que o mundo contém, nos territórios em que vivemos, onde a vida concreta continua apesar da pandemia e da gigantesca e escancarada crise econômica e do colapso dos sistemas estatais de poder em responder para proteger as nossas vidas ameaçadas. Tal questão aqui no Brasil não poderia ser mais evidente. Podemos ser uma exceção na intensidade e forma, mas a questão está escancarada no mundo inteiro. Ao mesmo tempo, reconheço que não estamos ainda produzindo trincheiras efetivas que possam barrar a barbárie que está no ar e começar a abrir novos e alternativos caminhos. Temos sinais das enormes contradições, mas não temos articulações e confluências capazes de gerar poderosos movimentos de cidadania para a mudança. Isto está faltando entre nós, sem dúvida, mas pelo mundo inteiro também. O fato é que estamos diante de circunstâncias totalmente novas e que as ideias e vontades de ontem não são mais suficientes e poderosas para fazer face às contradições escancaradas no cotidiano do aqui e agora. E a história continua, ainda não acabou. Sempre outro amanhã é possível e ele começa no aqui e agora.
Com tal olhar é que vejo a necessidade de por de ponta-cabeça muito do que vínhamos pensando como alternativas. Estou convicto de que a invenção de outro mundo ecossocial sustentável e democrático supõe pluralidade de respostas, diversas como são o Planeta, a biodiversidade e as culturas humanas que criamos na interação com elas. O segredo é saber restabelecer a cooperação e a solidariedade, o cuidado e o compartilhamento, a corresponsabilidade democrática de forma planetária a partir de nossos territórios concretos – territórios de cidadania -, nosso chão, com suas possibilidades e seus limites. Precisamos viver e sentir que somos parte de territórios solidários de vida.
O que surge como uma espécie de questão incontornável na construção de alternativas é resgatar os bens comuns como direitos coletivos. Trata-se de repô-los no centro da organização e das dinâmicas ecossociais que conformam a vida, com cuidado coletivo, compartilhamento e convivência. Reafirmo aqui que é e pode ser comum tudo o que não for nem privado e nem estatal, mas de todo mundo e zelado em sua integridade por todo mundo, cobrando, sem dúvidas dos Estados e das organizações que assim os tratem. As regras de gestão de comuns só podem ser regras estabelecidas democraticamente por aquelas e aqueles que os compartem. A reinvenção do viver, com democracia ecossocial, exige que a cidadania em ação seja protagonista.
Rio, 27/05/2020