Cândido Grzybowski
Sociólogo, do Ibase
Este título parece longe de uma crônica de conjuntura, mas talvez seja o que importa fazer neste momento: praticar o livre pensar, temperando pensamentos com saudáveis sonhos e desejos. Precisamos esfriar a cabeça, desopilar e pensar em algo melhor do que ficar atentos às novas cenas do folhetim político-jurídico-policial de péssima qualidade, protagonizado por bandos de gangsters engravatados que estão no controle das principais instituições de nossa República, a serviço do “Senhor Mercado” e de seu próprio bolso. O nosso Brasil está nas mãos de ladrões em conluio com grandes corporações econômicas e financeiras. A política, bem comum fundamental da democracia, foi privatizada e corrompida. A corrupção, como um verdadeiro câncer político, está no centro do poder de Estado e suas metástases aparecem no conjunto do sistema estatal, no executivo, no parlamento, no judiciário, com ramificações do Planalto aos estados federados e municípios. Enquanto negócios escusos prosperam, milhões de pessoas são condenadas a enfrentar a miséria e a pobreza e nem viram notícia em seu anonimato de sofrimentos e luta diária pela sobrevivência.
Chorar alivia a perda da democracia, pela qual lutamos muito, e as frustrações com sonhos e projetos acabados, mas não aponta saídas para um novo futuro. Nas planícies de nosso imenso país, onde vamos levando a vida, nos restam as possibilidades de deixar para lá e desistir ou de nos reencontrarmos como cidadania com poder de tudo mudar. Para onde? Como? Quando? São reflexões que exigem mudanças em nosso próprio cotidiano, de cada uma e cada um, do lugar onde nos encontramos e com o que temos, pois milagres não vão acontecer. Aliás, nós só viraremos força irresistível de mudança nas ruas, como milhões anônimos, quando formos cidadania ativa com poder instituinte e constituinte de tudo fazer e refazer. Tarefa longa e difícil? Sem dúvida! Portanto, nada como começar logo. Este é, no meu modo ver e analisar, o poder que podemos construir para mudar tudo isto.
Bem, estou no meu pequeno refúgio, um sítio no pé da Serra do Mar, onde tenho o privilégio de pensar enquanto faço algo e muito tempo para ler e escrever. No calor e seca intensa deste final de inverno por estas bandas, como vamos comemorar o início da primavera e o dia da árvore durante a semana, aceitei a sombra feita pela copa de uma para pensar a minha crônica. Foi aí que veio a luz de que nada em termos de alternativas de futuro, absolutamente nada, a gente pode esperar da “grande política” com epicentro em Brasília. Sim, muito ainda pode acontecer no que diz respeito ao desmonte constitucional de direitos de cidadania e das políticas que buscavam torná-los efetivos. Uma espécie de democracia fascista – se é que tal transgênico político pode existir – pode criar raízes institucionais pela trama dos bandos lá em Brasília.
As sombras de árvores são espaços privilegiados para papos e construção de cumplicidades. No meu isolamento, só pude compartir reflexões com a minha companheira, e lá se vão 50 anos juntos. Meio enojado com noticiários de jornais e televisões, cansado de garimpar nas redes – apesar de descobrir algumas pérolas de pensamento e análise – decidi pensar sobre o que nos falta no momento. Sinto como prioritário ter um projeto de humanidade como contraponto ao capitalismo globalizado e descontrolado que tudo nos impõe, desde os modos de produzir e os estilos de vida, até os sonhos e esperanças, negando que outro mundo seja possível. Já ando sinalizando isto nas minhas crônicas e, no Ibase, estamos esboçando a criação de espaços para facilitar o pensar junto, entre os e as que estão dispostos a romper amarras e pensar livremente. Afinal, o Ibase define-se e se reconhece como parte de uma cidadania sempre insurgente, que sempre acha algo possível melhor do que está aí.
As árvores, parte da biosfera, são o lado mais visível da destruição que implica o modo de produzir e consumir de um sistema voltado à acumulação privada de riquezas sem limites. Isto parece muito longe de nosso cotidiano? De forma nenhuma! Os malfeitores, enquanto seus crimes de corrupção vão pipocando, estão praticando a maior agressão aos grandes comuns do país, os territórios florestais de algum modo protegidos. Tais territórios estão sendo entregues à ganância conquistadora, colonizadora e exploradora de “recursos naturais gratuitos” pelos seus financiadores, as grandes corporações econômicas e financeiras. Nosso futuro comum está sendo comprometido de forma irreversível por aí. A violência contra os guardiões dos comuns – povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos e extrativistas, garimpeiros e posseiros – está “liberada” em nome do mercado, do desmatamento, do agronegócio e da mineração.
Sem dúvida, resgatar, “comunizar” e refazer o espaço e as instituições da luta política é uma tarefa central. Para isto, vai ser necessário termos a coragem de por o dedo em nossas feridas, no nosso seio de sociedade civil e do que construímos como práticas políticas e partidárias. Precisamos aprender com nossos acertos e erros e ver onde estão as fragilidades. Uma espécie de “oligarquização” da política partidária e representativa e a aceitação das regras da conciliação na arena política se tornaram normais na esquerda, mesmo se publicamente negadas. Isto foi particularmente fatal no PT, o maior experimento partidário recente com raízes profundas na cidadania de setores populares mais explorados e excluídos. Sonhos e esperanças de milhões foram por água abaixo. Frustração de várias gerações.
Mas, voltando a meus pensamentos na fresca das árvores, temos um déficit estratégico em nossa reflexão de cidadania no Brasil que diz respeito à estrutural relação entre integridade da natureza, economia, sociedade civil/cultura/cidadania ativa/política/democracia. De modo simples, reafirmo: fomos colonizados pela ideia e pelo sonho do desenvolvimento, do crescimento econômico continuado como modo de vida, com variantes para mais mercado ou mais regulação, mas de todo modo desenvolvimento. A natureza ou, melhor, a Mãe Terra não entra nesta equação de explorar sempre, de acumular, de dominar de consumir e viver que o capitalismo nos impõe através da sua única alternativa, o desenvolvimento/crescimento com as menores amarras possíveis. A democracia e a cidadania, a igualdade e o bem viver, os comuns e a integridade do planeta, tudo isto é fundamental para existirmos e não são condições estruturantes da economia, mas seus derivados. Enfim, por trás dos gangsters da política atual, estão os donos de gado e gente dos tais mercados nem aí para as mazelas que atingem os comuns naturais e a cidadania da maioria. O que eles não agüentam é o pensamento rebelde. Rebeldia do pensar é o modo mais radical de voltar a praticar a cidadania ativa com potencial mais estratégico.
Rio, 18/09/17