Cândido Grzybowski
Sociólogo, presidente do Ibase
Uma das maiores celebrações nos tempos atuais, entre nós e para muitos povos da Terra, é a passagem de ano. Como um momento essencialmente simbólico e criação cultural, a passagem vem carregada de religiosidade e da magia dos sonhos e esperanças, com reafirmação de amores e compromissos, com intenções de superação e busca de sucesso individual e coletivo. Porém – sempre temos algum porém –, a gente se lembra de amigos e amigas que nos deixaram no ano que passou e continuam povoando a nossa memória, das alegrias e dos sofrimentos que podemos ter infringido nas pessoas queridas com quem compartimos a vida, nos encontros e desencontros no dia-a-dia, nas iniciativas bem sucedidas e nos projetos frustrados, nas pequenas realizações e conquistas pessoais, enfim, no que fizemos e no que deixamos de fazer. E tem ainda tudo aquilo que nos fez vibrar ou lamentar por feitos coletivos, na verdade pouca vibração e muita decepção no ano de 2018, de um ponto de vista onde me situo como cidadão do Brasil.
O que a gente nunca pensa é o quanto isso tudo não passa de uma convenção social, um acordo tácito sobre usos e costumes, implícito, é assim porque é assim, o vivemos sem buscar as suas razões de ser o que é. Até esquecemos que estamos numa parte de globo terrestre que celebra a passagem de ano na noite de 31 de dezembro para o réveillon de primeiro de janeiro do ano seguinte. Para boa parte da humanidade ainda não é esta a data de passagem de ano e nem estamos em 2019. Os calendários são diferentes em diferentes culturas, apesar de nosso calendário ser o dominante na atual civilização eurocêntrica do capitalismo, com sua globalização abarcando o mundo todo. Ou seja, o calendário é também uma criação histórica que carrega em seu interior muitas contradições, muita história de dominação política, econômica e cultural. Mas, sem dúvida, é uma grande criação cultural que dá sentido e organiza o viver em coletividade. O calendário, como a linguagem, nos socializa; são processos construtores de coletividades, comunidades, povos e civilizações. Uso com destaque o verbo socializar para mostrar o absurdo do afirmado no discurso de posse realizada pelo novo presidente do Brasil para seus apoiadores, exatamente no dia 1º. de janeiro de 2019. Para sermos membros de um coletivo-povo como o Brasil, muito diversos, com dominações e desigualdades, precisamos nos socializar como parte de um todo, adotar convenções básicas comuns, como a língua, o calendário, a Constituição… E por aí vai a história da vida real que vivemos.
Muito concretamente, temos algo imutável que é o fato natural de um dia de sol ser seguido por uma noite sem sol, com lua mudando, e volta o dia e segue a noite, com lua mudando. Mas isso num processo circular contínuo, tanto da Terra em relação ao Sol, como da Lua em relação à Terra. Convencionamos historicamente chamar isto de processo de Leste a Oeste, e até criamos um horário mundial com 24 paralelos de Norte a Sul cobrindo o globo terrestre (louco, por sinal, de 24 horas, 60 minutos e 60 segundos), tendo o ponto central de referência o paralelo zero, que passa sobre Observatório de Greenwich, na Inglaterra (da dominação imperialista britânica quando instituído). Enfim, a terra gira em torno ao sol, criando dias e noites, variando de inclinação e distância em relação a ele, dando origem ao que denominamos de estações, binárias sempre: verão- inverno, outono-primavera, dependendo se estamos no que convencionamos chamar Norte ou Sul do planeta, também carregado de histórica de dominação, pois nos mapas (outra convenção) o Norte sempre aparece por cima e o Sul por baixo. Alguém se pergunta por que é representado assim, se estamos num universo complexo e até desconhecido? Claro, tais convenções não podem ignorar nuvens, chuvas, ventos e trovoadas, geadas e neves, secas e enchentes, tanto de dia como de noite, num processo ecológico que não controlamos. Definitivamente, criamos convenções culturais para viver num planeta cuja dinâmica ecológica condiciona toda a biosfera e particularmente nosso viver em sociedade. Fundamentalmente, nossa vida depende da integralidade de tais sistemas ecológicos, mesmo sem pensarmos neles. Criamos convenções fundamentais, variáveis em muitos pontos de um povo a outro do mundo, para nos situarmos e podermos ir levando a vida.
Por que trago isto para reflexão? A razão é muito simples: a vida humana só é possível a gente sabendo se inserir – passiva ou criticamente – nas convenções sociais e históricas de nosso tempo de vida. Nós somos entes produtores de consciência, cultura e formas de comunicação. Por isso, criamos convenções e também as reinventamos, transformamos, pois cultura é a força social que se soma à natureza na moldagem da vida, toda vida e a biosfera, a própria evolução ecológica (basta lembrar aqui a perda da biodiversidade e a mudança climática). A linguagem é, no dia-a-dia, a mais indispensável, é a que nos torna gente, ator social, parte de um coletivo e base do relacionamento em todas as esferas da vida. Pode até ser só por sinais e não por voz, mas é linguagem. Outras nem são tanto, como o horário, mas que confusão seria viver nas complexas cidades de hoje sem horário convencionado como comum? Temos convenções mais abrangentes e aquelas mais restritas. A linguagem da música, por exemplo, é mais abrangente que a linguagem falada, mesmo se os ritmos e danças sejam linguagem específica de diferentes culturas e povos, mas são um bem comum universal. A verdade é que a mais estranha e nunca escutada ou vista manifestação musical nos fala, onde a gente estiver.
Muito poderia ser dito das diferentes convenções que organizam nossa vida como membros de coletividades. Mas o que quero chamar a atenção é para o calendário, para o muito que é e o nada que pode ser uma passagem de ano. O que mudou, verdadeiramente, foi um dia seguir outro. Mas isto é o viver. Ou seja, o ontem está na frente e não pode ser mudado, o amanhã está atrás e em tudo pode ser mudado, de um ponto de vista humano. Nosso futuro só em parte foi decidido em 2018, pois o que foi feito está feito, não pode ser mudado. Mas o amanhã não depende só de causalidades, sistemas ecológicos, donos do poder e nossos governantes, do que os donos de tudo farão e tudo mais. Este é apenas um dos lados da vida. O outro é que nós, humanos, temos capacidade de fazer mudar o curso da história, sempre. Talvez não amanhã, mas depois sim. Podem os outros fazer, sem nós ou sem nós termos, ao menos, tentado de impedi-los de fazer. Enfim a história de 2019 e dos anos vindouros ainda não está definida. Viver é um fazer história renovada, para o bem ou para o mal, a partir das convenções socioculturais existentes e explorando suas contradições.
Termino lembrando uma referência central de um livro autobiográfico crítico da ativista cidadã e amiga mexicana, Laura Sarvide, Ciudadanía intermitente. Hasta cuándo?, que acabei de ler. Laura começa lembrando papos de adolescente com seu avô, que para dar a sua versão da conturbada história mexicana partia da constatação: “unos lo hacen y otros lo permitimos”. E termina a reflexão sobre sua própria trajetória de ativista durante os últimos 50 anos afirmando: “Unos lo hacen y ya es tiempo que la ciudadanía no lo permitamos más…”.