Cândido Grzybowski

Sociólogo, presidente do Conselho Curador do Ibase

Na semana que passou, o capitão Bolsonaro concretizou uma velha proposta que ronda a oficialidade das casernas e que ele sempre ratificou: os povos indígenas como atraso e empecilho ao chamado desenvolvimento nacional. No jargão militar, trata-se de questão de soberania, de “integrar para não entregar”, mas cujo real sentido é completar a tarefa da conquista e colonização de territórios e seus povos para explorar as suas riquezas naturais. Além do mais, os projetos de lei propostos, com mudanças nos artigos constitucionais conquistados na redemocratização em defesa de povos indígenas e seus territórios, são uma promessa de campanha do capitão e, como outras, testam a resiliência política e institucional da democracia brasileira à avassaladora onda de desconstrução de direitos e de volta ao capitalismo selvagem.
São projetos que visam concretamente liberalizar o extrativismo hidrelétrico e agromineral (madeira, agronegócio e minérios) em territórios indígenas e na Amazônia, facilitando sua livre expansão por cima de tudo e de todos, em um verdadeiro projeto colonizador. A tais propostas se somam a entrega da Fundação Nacional do Índio (Funai) ao “ministério do agronegócio” e a carta branca ao ministro Ricardo Salles, que se mostra célere no desmonte do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e das políticas protetoras do meio ambiente, com aumento das ocupações de áreas protegidas, garimpo sem controle, desmatamento e queimadas em grandes áreas protegidas. Enfim, intensifica-se um modelo de economia neoliberal radical com bases num extrativismo predador dos territórios e seus povos originários e tradicionais.
Os povos indígenas já vêm reagindo de forma veemente a mais estas ameaças devastadoras. Como afirmam suas principais lideranças, estão diante de mais uma recolonização, dando continuidade à empreitada de conquista e colonização velha de cinco séculos, com expropriação de seus territórios comuns e o próprio extermínio de povos inteiros. Por quê? Para que? Como a cidadania brasileira se posiciona em relação a mais essa onda destrutiva sobre seus povos originários? Não podemos permitir tamanha barbárie!
Para entender a caráter colonizador e destrutivo do extrativismo, comparto aqui algumas reflexões a partir de análises críticas a que tive acesso e, sobretudo, de uma viagem recente a um território agredido por um grande complexo extrativista mineral, com oportunidade de conversar com representantes locais de comunidades atingidas, organizações de cidadania ativa e representantes governamentais do município, além de observações do impacto na organização e no cotidiano do viver em território sob tal pressão. Estive em viagem de reconhecimento e trabalho em Conceição do Mato Dentro, Minas Gerais, cidade criada há mais de 300 anos, em plena expansão do ciclo escravocrata do ouro. Atualmente, o território está sendo submetido a uma nova e grande invasão de conquista e exploração para atender aos ditames da extração de minério de ferro do Projeto Minas-Rio, que, além da mina em si no município de Conceição e com impactos nos municípios circunvizinhos, inclui um mineroduto de 520 km ligando a mina ao Porto Açu, no Rio de Janeiro. O projeto iniciou como parceria entre o empresário Eike Bastista e a Anglo American, mas agora é tocado só por esta última, uma empresa mineral global. Além do mais, Conceição do Mato Dentro está sendo ameaçada pela possível implantação de outro projeto mineral na montanha que ladeia a cidade, desta vez pela companhia Vale.
 

Serra do Espinhaço vista da Lapinha da Serra, em Minas Gerais. Foto de Fábio Martins Hayashi / Creative Commons
O que importa destacar aqui é o sentido de tais projetos para a população local e seu território, bem comum. Afinal, para extrair minérios do ventre do território eles promovem um total reordenamento destrutivo do que é “território de vida, condição da própria existência do grupo”[i], para virar território de e para negócio privado, de fora, como nos lembram as análises do geógrafo Milton Santos. Estamos diante de um território que já foi agredido violentamente no passado em busca de ouro, com base em trabalho escravo, destruindo povos originários. As marcas disso viraram história e constituem o território vivo das atuais gerações, com fortes marcas econômicas, sociais e culturais afrodescendentes na população local, rural e urbana. A seu modo, trata-se de um território bem comum em processo de reordenamento destrutivo, pela privatização de grandes porção do território, expulsão de agricultores familiares e quilombolas, ameaças e medos na vida diária dos que se sentem atingidos mas não são reconhecidos como tal pela mineradora. E a pequena cidade de Conceição do Mato Dentro foi plasmada por novas necessidades e demandas decorrentes da mineradora, desde a sua implantação, com atração de milhares de trabalhadores de fora, e agora, com os expulsos não assentados e com o desordenado crescimento demográfico, crime organizado e favelização.
Claro, cada situação em que se implantam projetos extrativistas de conglomerados globais, de fora e para fora, com lógica determinada pelo lucro fácil, contando com uma governança estatal cúmplice no assalto aos recursos naturais e povos existentes no território, tem suas especificidades, que não podem ser ignoradas. Mas, com olhar de cidadania e dos direitos, o que a gente vê é parte de um grande comum natural e de uma cidadania compartilhada que estão sendo agredidos. Não sofremos o mesmo do que quem tem o território como sua vida e que a agressão rouba de forma presente e visível o seu horizonte, seus sonhos e o futuro de seus filhos(as) e netos(as). Mas precisamos considerar que é também o nosso próprio sonho, de um povo inteiro, que está sendo ignorado e submetido aos ditames do extrativismo predador. As agressões locais de povos e seus territórios devem ser vistas como agressões a nós todos, cidadania que sonha construir uma sociedade democrática ecossocial, radicalmente inclusiva, vibrante e resiliente dada a sua enorme diversidade social e cultural, de bem consigo mesmo e com a integridade da natureza que lhe dá generosamente as condições de viver.
O Projeto Minas-Rio é um entre tantos outros que hoje agridem a integridade da Serra do Espinhaço, declarada Reserva da Biosfera pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura  (Unesco), ainda nos anos 80 do século passado, pela sua unicidade. Estende-se do Centro-Sul de Minas até Chapada Diamantina e Morro do Chapéu, na Bahia. Ela demarca a confluência de três biomas brasileiros: Cerrados, Mata Atlântica e Caatinga. Possui uma biodiversidade rica com espécies únicas, só ali encontradas. A bacia hidrográfica do São Francisco nasce e se estende a partir das montanhas da Serra do Espinhaço. Além disso, ela foi e é condição de florescimento da rica cultura construída pelo suor e lágrimas dos descendentes de escravos da mineração. Portanto, ela é parte fundamental do que somos como povo e como território vivo.
Voltando ao ponto de partida, trago tudo isso para que com coragem e ousadia denunciemos e lutemos contra os grandes projetos extrativistas minerais como um todo do jeito que se implantam e só se voltam à acumulação fácil, não importando que estejam agredindo a própria integridade territorial dos territórios e seus povos concretos, inviabilizando o seu futuro e de nós todos e todas. Essa é a questão de fundo da recolonização e destruição dos territórios indígenas contida na proposta do Governo Bolsonaro. Não podemos duvidar e nem medir esforços para barrar tal investida violenta e com capacidade de devastar parte de nós mesmos, sem retorno possível. Somemo-nos aos povos indígenas e digamos: “Basta. Assim não!”.
 
 
 
 
[i] Haesbaert, R. Território(s) numa perspectiva latino-americana. Journal of Latin American Geography, 19 (1), 141-151.

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