Cândido Grzybowski
Sociólogo, presidente do Ibase

Estamos atravessando como humanidade uma grande encruzilhada, com um antes e um depois, este com diferentes direções possíveis, nos impondo o dilema e a oportunidade de escolha para onde seguir. Claro, há sempre as e os, provavelmente até muitos, que pensam voltar ao caminho já trilhado, à anormal e absurda normalidade de antes, um mundo de vergonhosa desigualdade, violência e destruição ecossocial. Mas se forjam também, em meio ao luto por milhares vidas perdidas, redescobertas de princípios e valores comuns, uma onda contagiante e agregadora de que é possível e desejável imaginar “outros mundos”.
Adoto como marco de referência, uma espécie de farol intelectual na busca, uma perspectiva que defino como democrática ecossocial. Não se trata de um modelo, mas de um conjunto de condições a respeitar para produzir democraticamente a pluralidade de alternativas na diversidade de territórios comuns de cidadania em que vivemos, nossos “endereços” no grande comum planetário, hoje ameaçado pela homogeneidade e poder destrutivo da globalização econômica e financeira do capitalismo. Somo-me assim a processos de pensar e agir como o “Pacto Ecossocial do Sul”, lançado recentemente.
Penso que o uruguaio Esteban Valienti expressa bem algumas das condições incontornáveis a respeitar nesta busca. Nas suas palavras, em tradução livre: “Agora se trata de substituir a religião onipotente e onipresente do mercado (Mercado) da oferta e da demanda, como a guia implacável de tudo, inclusive dos sistemas que fracassam estrepitosamente, da governança mundial incapaz de enfrentar a pandemia e outros desastres…, sem pretender a simpleza de reivindicar um estatismo que se mostrou profundamente fracassado, inclusive em seu tempo máximo o ‘socialismo real’, mas de sair desse torniquete infernal, e privilegiar em sua visão as necessidades coletivas, acima dos supremos egoísmos individuais, como os motores da nova economia sustentável. E não confundir o coletivo exclusivamente pelo estatal”. A “religião” do mercado – os economistas em geral falam de “racionalidade”, mas é, sobretudo, crença – conquistou e colonizou nossas cabeças com imaginários e valores de um desenvolvimento/crescimento sem limites e seu padrão de consumo como ideal de felicidade. Na prática, porém, explora, domina e coloniza, criando enormes injustiças ecossociais e destruindo a integridade do bem comum maior, o Planeta. A razão de ser de tal religião é acumular riquezas nas mãos de 1% contra todas e todos os demais, com racismos, patriarcalismos e violências, negando direitos iguais de viver como uma humanidade compartilhada na diversidade do que somos num Planeta também maravilhosamente diverso.
Mas qual o princípio ético que precisamos reintroduzir no centro do viver como condição para outros mundos, de convivência e compartilhamento entre nós mesmos e com a natureza que nos dá a vida?  Claro que precisamos de economia que produza e organize, sem destruir, as relações e processos da incontornável condição de troca entre todos e com a natureza para viver. Precisamos de ciência e tecnologia para potencializar o trabalho humano de produzir bens e serviços sem dominar, contaminar e destruir a integridade da teia natural da vida. Precisamos de cultura, imaginação e afeto para dar sentido pleno ao viver humano. E, claro, precisamos acordar normas de convivência e compartilhamento entre todos, sem discriminações e intolerâncias. Enfim, precisamos nos reconhecer umas e uns a outras e outros como livres e iguais na diversidade. Antecipo dizendo que precisamos tomar consciência e praticar responsavelmente as “regras comuns” do viver, como valores fundantes e organizadores da sociedade. Tudo isto é um fazer humano histórico, se reinventando permanentemente, em meio a tensões e cotradições, novos desafios e novas possibilidades, com gerações se sucedendo. Por isto, necessitamos de democracia como condição política em que possamos estabelecer acordos possíveis, tendo por base sempre os territórios em que vivemos. Precisamos que as divergências e diferenças sejam forças de construção do possível historicamente e não fontes de ódios, intolerâncias e dominação.
O que perpassa isto tudo, como condição indispensável do viver, é o princípio ético do cuidado. Não é o dinheiro, não é o mercado, não é o Estado. A pandemia atual, como ameaça planetária, joga na cara de todo mundo a necessidade do cuidado na vida, todas as formas de cuidado entre nós como condição sine qua non. Somos filhos e filhas de mães mulheres e todos da grande mãe natureza. São exatamente as mulheres, nas lutas por sua emancipação diante do domínio estrutural do patriarcalismo e da violência machista, que demonstram a centralidade do cuidado, apesar do seu “ocultamento” e desvalorização pelo mercado. Comparto aqui uma reflexão nestes tempos de pandemia da ativista feminista e professora Alejandra Ciriza, de Mendoza, Argentina: “Existe no cuidar de seres humanos e na reprodução da vida uma densidade difícil de perceber para quem vive em uma sociedade dominada pela lógica mercantil do capitalismo. (…) Ela expulsa o corpo e a materialidade da vida: a necessidade natural e social do alimento, descanso, afeto, a mortalidade do corpo que somos, o laço com outros e outras, o que nossas companheiras feministas de Abya Yala denominam como comunidade” (em tradução livre.
Desprivatizar o cuidado e a reprodução das nossas vidas é o que se impõe, não importa para que país olhemos. O patriarcalismo e sua prática machista precisam ser abolidos tanto pela dominação que impõe sobre as mulheres em geral, como pela sua interiorização no espaço familiar, contaminando amores e carinhos, como imposição de dupla jornada de trabalho para mulheres. Neste sentido é fundamental levar em conta a economia do cuidado em qualquer forma ou paradigma de outro mundo. Porém, de uma perspectiva democrática ecossocial – o tal farol referente analítico apontado acima – é necessário repensar o cuidado como base de toda a economia. Outros paradigmas civilizatórios não serão outros se não se estruturarem tendo o cuidado como condição da economia atender necessidades da vida e não do mercado, do poder democrático se legitimar, da sociedade florir em torno aos bens comuns, tendo a convivência como regra e o compartilhamento de direitos como cidadania de todas e todos. O princípio do cuidado na base de uma nova economia é o que apontam Graciela Rodriguez e Tatiana Oliveira em artigo recente.
Não se trata de “ter mais”, mas antes o que importa é “ser mais”, o viver bem com dignidade e reconhecimento em uma sociedade de igualdade e liberdade em que cabemos todas e todos. É com cuidado que teremos saúde, educação, ciência, conhecimento e cultura como bens comuns zelosamente geridos para o usufruto de todo o mundo, e não produtos vendidos e vilipendiados pelo mercado. Com base no cuidado e com senso de responsabilidade coletiva que redefiniremos nossa relação com os grandes bens comuns naturais: o ar e o clima, a água, o solo, as matas e sua essencial biodiversidade, base de todo sistema de vida.
Gostaria de terminar com uma sugestão, oportuna para estes tempos de pandemia em nossas casas. Talvez não haja reflexão mais oportuna a se fazer em termos de cuidado do que olhar para o prato de comida na nossa frente. O que ele nos revela e o que esconde sobre a vida, a relação com os comensais e com quem preparou o prato, a complexidade de relações sociais que ele carrega mas não revela, desde a sua produção no campo até chegar à nossa mesa! Quanta gente, quanto suor humano e em que condições sociais de produção, com que tecnologia foi feito o trabalho de produzir, colher, processar, transportar, dispor na prateleira do mercado…! Será que foi manipulado como transgênico e traz consigo os venenos do agrotóxico ou em sua produção se adotam práticas do cuidado da agroecologia? Enfim, quanta água e sol estão contidos num singelo prato de comida! E quanta gente passa fome, pois o mercado e a falta de renda excluem muita gente do direito de comer, condição de todo viver! Podemos redescobrir a economia e tudo o que precisa mudar em termos de cuidado… simplesmente comendo. O cuidado é, sim, condição indispensável e estruturante do viver humano numa sociedade e num planeta sustentável.
Rio, 30/07/2020
 

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