Artigos

Nossa luta é pela hegemonia dos princípios e valores éticos da democracia ecossocial

Cândido Grzybowski

Sociólogo, presidente do Conselho de Governança do Ibase

O governo do capitão nos impinge uma “guerra” de destruição cultural, social, ambiental, econômica e institucional. Antes de avaliar a sua dimensão prática, considero mais importante, politicamente, ficarmos atentos à sua dimensão simbólica, como discurso que mobiliza “bandos” de seguidores e divide a sociedade de forma binária: nós x eles, os bons brasileiros x os maus, os que merecem viver x os que devem ser abatidos, e assim por diante. Com mensagens e símbolos – como “Brasil acima de tudo e Deus acima de todos”, “Pátria amada Brasil”, “guerra ao marxismo cultural”, “escola sem partido”, “ideologia de gênero”, a tal imagem da “arminha” como ícone de segurança pública, discurso machista, misógino, racista, homofóbico, até chulo, de intolerância com qualquer diversidade – cria-se na esfera pública um clima desagregador. Na prática, é a democracia que está sendo atacada como imaginário de um modo de viver com liberdade de pensamento e ação, de convivência entre todas e todos, reconhecendo entre si o direito de igualdade na diversidade.
É uma agenda tosca na sua formulação e extremamente autoritária e antidemocrática em seu conteúdo, mas tem grande potencial mobilizador de adeptos em amplos setores precarizados pelo desemprego e informalidade, sem perspectivas para suas vidas. O “mal-estar” público é visto por uma ótica moral e falta de poder forte que reprime e prende os “maus” e corruptos. A economia e o livre mercado não funcionam devido ao excesso de direitos, leis, regulamentos, impostos, funcionários e políticas do Estado, que beneficiam preguiçosos e ineficientes. O próprio mundo atual é visto com tal viseira, levando o país a um realinhamento com os governos mais autoritários e conservadores da atualidade.
Na prática, tal agenda tem, sim, provocado estragos de monta e está desfigurando a Constituição de 1988 no que ela tinha como viés democratizador, especialmente nas políticas sociais – trabalho, saúde, educação, previdência – , na ciência e tecnologia,  na questão ambiental e na proteção de povos originários e tradicionais.  Ao mesmo tempo, ao reduzir o papel do Estado nestas áreas e ao restringir a sua intervenção na economia, está abrindo as portas para o mais desastroso modelo de livre mercado e capitalismo selvagem, extrativista e rentista, com integração subordinada na dinâmica global. Assim, a agenda se torna adequada a uma classe dominante cínica, herdeira de uma mentalidade colonialista, escravocrata e racista, patriarcal, violenta, aferrada aos seus privilégios. Conta também com a adesão interesseira de estratos médios subservientes tanto aos “donos de gado e gente”, extrativistas, como aos rentistas e sugadores de recursos públicos.
Na verdade, entre nós, tal processo de desmanche de imaginários democráticos mobilizadores para outro Brasil e outro mundo não começam com o atual governo do capitão e seu bando de asseclas. Ele se acentua agora e parece mais ameaçador, pois não esconde sua inspiração autoritária, até fascista, como o discurso do secretário da cultura, já demitido, demonstrou cabalmente. Mas até um dos filhos do capitão já defendeu a volta do famigerado AI-5 em caso de ameaças de ruptura cidadã diante do que o governo tenta impor ao país. O fato é que existe um autoritarismo ainda forte na sociedade e que deixou o armário, apoiando o capitão.
Porém, meu objetivo com esta crônica não é esmiuçar a conjuntura e se render a ela. Pelo contrário, gostaria de convidar para um olhar mais estratégico sobre ela e as possibilidades que ela carrega, revelando e escondendo ao mesmo tempo. Transcorrido um ano de governo, a gente pode mapear as iniciativas suas que não deram certo, por serem tão descabidas que esbarram no bom senso ou por serem anticonstitucionais, por falta de base parlamentar para aprovar, por encontrarem em alguma forma de resistência institucional ou cidadã. Tivemos uma profusão de medidas provisórias, projetos de lei, discursos descabidos e que envergonham a gente, acusações e agressões, notícias falsas em redes sociais, conluios de bastidores, trocas de ministros e assessores de primeiro escalão, desconfianças e traições mais do que acordos. Alguns asseclas são aplicados e eficientes em sua capacidade destrutiva, como o economista fundamentalista do livre mercado Paulo Guedes, o ministro do desmatamento e do fogo para o meio ambiente Ricardo Salles, a ministra do agrotóxico para o agronegócio Tereza Cristina. E figuras patéticas como o diplomata terraplanista Ernesto Araújo, titular do Itamaraty, a ministra do rosa e azul Damares Alves, o ministro de educação que nem sabe escrever direito Abraham Weintraub e, enfim, muitos militares de patente em postos chaves, mas nos bastidores e de algum modo subordinados ao capitão.
Há uma resiliência institucional e cidadã multifacetada diante do governo para avaliar com mais atenção e visão estratégica sobre o que podem significar para o amanhã e o depois. Concordo inteiramente com a análise de Luiz Werneck Vianna, concedida ao IHU On-Line e publicada no dia 13/01/20. A situação em que estamos revela, em suas palavras, “… uma guerra de posições: estamos num momento de empate; não de impasse”[i]. O governo já sabe de seus limites e do que pode fazer ou não. Não se arrisca, mas recua, ao dar passos que podem significar derrotas. As instituições como o Congresso e o Judiciário definem limites à atuação governamental. Os militares, em grande número em postos de governo, dão suporte, mas não parecem dispostos a apoiar as aventuras autoritárias do governo do capitão, que, aliás, valoriza e é apoiado mais por militares de baixa patente e até milicianos mais do que por generais.
Como ativista, penso no que precisamos descobrir nossas próprias potencialidades como cidadania para avançar a partir de nossas trincheiras nesta “guerra” que prefiro definir como de disputa de hegemonia: democracia x fascismo ou, como alguns preferem, autoritarismo. Guerra ainda mal delineada, mas muito real e ameaçadora. Não podemos desdenhar o que temos pela frente e o que virá. Mas, sim, precisamos olhar para o que temos como fortaleza e as oportunidades que se nos apresentam para a ação cidadã.
Luiz Werneck Viana nos alerta, com razão, para a oportunidade conjuntural das eleições neste ano. Sem dúvida, uma ocasião em que, queiramos ou não, a sociedade se mobiliza e, no caso das eleições municipais, desde os territórios locais em que vivemos e sobre eles, como os gerimos. Oportunidade que se nos apresenta de modo forte e impositivo. Não podemos perdê-la, especialmente como espaço de disputa de hegemonia das idéias e valores democráticos. Podemos perder as eleições, mas a tal guerra não acabará aí.
A grande questão é que não se trata apenas de ganhar eleições ou evitar o pior. O processo de redemocratização desde a Constituição de 88, com seus poucos avanços e muita falta de radicalidade, a conjuntura de rupturas e realinhamentos aberta em 2013, o golpe institucional e o medíocre governo Temer, tudo mostra que estamos diante do desafio de construir e reconstituir um verdadeiro poder democrático. Não se trata simplesmente de ganhar eleições, mas de um processo muito mais amplo e profundo: construir um poder de novo tipo, expressão de cidadania e a ela subordinado. Trata-se de uma luta de dimensões múltiplias, mas que precisa ser travada e vencida antes de tudo no seio da sociedade civil, como hegemonia de um movimento irresistível de cidadania.
Aqui entramos num terreno em que temos que valorizar nossas fortalezas nesta “guerra” que nos é proposta. A disputa de hegemonia passa por valores e princípios éticos. Nossa fortaleza são exatamente os valores e princípios éticos da democracia: liberdade, igualdade, diversidade, solidariedade e participação. Hoje, incorporando as questões urgentes e incontornáveis de uma perspectiva cidadã, penso que a disputa de hegemonia deve nos levar a elaborar e disputar a constituição de um bloco de idéias, visões, concepções e valores que aliam justiça social e justiça ecológica com perspectiva de método democrático para tal “guerra”.  Chamo isto de perspectiva de democracia ecossocial, onde todos os direitos humanos – civis e políticos, sociais e culturais, comuns e ambientais – se combinam radicalmente com todos os direitos da natureza que nos dá a vida, para a defesa da humanidade com um todo e do nosso maior bem comum, a integridade ecológica do Planeta Terra.
Concluo propondo categoricamente que deixemos de ser saudosistas de um passado que já se foi e que não voltará. Como cidadania, o desafio é nos reinventarmos na ação transformadora, na rua e nos territórios, achando e conquistando direitos, acreditando na prática radical dos princípios e valores éticos da democracia ecossocial: liberdade, igualdade, diversidade, solidariedade, participação e integridade dos bens comuns naturais.
[i] Entrevista especial com Luiz Werneck Vianna. <ihu.on-line…> 13/01/2020

Tradução »