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Mulheres, identidade e emancipação social

Cândido Grzybowski

Sociólogo, presidente do Conselho Curador Ibase

Dia das mulheres, 8 de março. Comecei a pensar nas mulheres com quem convivo e comparto muitas coisas. É uma enorme teia de relações de todo tipo, que a gente deixa passar batido muitas vezes, não pensa e nem valoriza. Porém, são o substrato da vida de qualquer uma ou um. Pensando bem, são círculos e mais círculos, de dimensões variadas, que ao viver vão mudando e se alargando, se estendendo, até que viram meio difusos, apesar de ainda fundamentais, e se perdem na geografia da cidade, do país, da região e do mundo, para trás e para frente. São relações estruturantes do fluxo da vida, que nos vinculam ao presente, ao passado e ao futuro. Até onde? Aí volta a questão filosófica elementar: quem sou? Quem somos? O que significa viver e estar aqui hoje compartindo isto tudo? Por ser o dia de mais de metade da humanidade, o dia das mulheres me leva sempre a uma introspecção: quem sou eu na relação com as mulheres com quem convivo e com todas as demais. Ocasião oportuna para pensar e, sobretudo, rever muita coisa. Está longe de ser algo confinado à vida e relações privadas, debaixo de um teto? Ou um ponto apenas, onde a gente mesmo com nossa individualidade, em círculos de relações que se alargam até percebermos que fazemos parte de uma complexa humanidade contemporânea e de muitas, muitíssimas gerações que nos antecederam e que estamos numa espécie de viagem que continua e pode continuar sem nossa existência física. O incrível é que levamos um dia-a-dia quase sem pensar nisto tudo, como se fosse assim por que assim é. Mas depende da gente como será amanhã? Talvez mais do que a gente pensa!

Foto Arquivo Ibase

O fato é que estamos mergulhados em momento histórico em que mais do nunca as mulheres se insurgem, contestam e combatem as relações sociais, os processos e as estruturas que as tornam subordinadas e dominadas nas sociedades concretas do mundo atual, de um capitalismo beirando à barbárie. Os movimentos feministas, com seu ativismo cidadão contra o patriarcalismo, o machismo, o racismo e todas as formas sexistas e racializadas de dominação, exploração e discriminação de corpos são um determinante da histórica do mundo em que estamos vivendo. Trata-se de uma revolução? Sim, ao seu modo, é uma grande e fundamental revolução nas estruturas como as conhecemos. Anunciam muita luta e sofrimento, muitas mudanças possíveis, uma humanidade melhor a se compartir entre todas e todos, sem discriminações. Vencerão elas e nós junto? O que estamos fazendo, nós, os outros, os homens, que somos parte do problema, mesmo sem sermos ou não nos considerarmos capitalistas, dominadores e exploradores de outras e outros? Podemos ficar de fora e achar que o feminismo não é com a gente também? Digo isso por que me pergunto se meu declarado feminismo não vem ainda mesclado de oportunismo machista.
Quero contribuir para a reflexão dessa complexidade e das enormes possibilidades que o feminismo contem para a mudança sistêmica necessária no insustentável modo capitalista de produzir e viver. Mas vou entrar no tema através de uma questão teórica e política que atravessa a maior parte das análises e reflexões a respeito, ainda dominada, no caso da esquerda, – e reconheço que moldou meu próprio pensar e analisar, como uma viseira – pela reflexão hegemônica e quase exclusiva de relações entre classes sociais como uma espécie de dogma. Por muito tempo, se impôs uma visão e modo de pensar de esquerda onde considerar classes sociais nas relações era suficiente para legitimar um pensamento progressista. Mas a realidade não cabe em esquema tão simplista e simplificador da complexidade de relações, processos e estruturas que moldam as sociedades e o próprio caminho de múltiplas contradições na evolução da humanidade.
Considero que o ponto de partida para uma revisão profunda do ideário da própria esquerda – falo em termos de um patrimônio de visões, ideias, análises e propostas de crítica e enfrentamento do capitalismo, que constituem grandes movimentos em sociedades históricas concretas, com dimensões claras de internacionalismo, apesar de todos os seus matizes – é a questão das classes sociais, da exploração e domínio nas relações entre classes sociais na base do capitalismo. Essa foi e anda é uma chave fundamental de leitura, sem dúvida indispensável. Mas não pode ser mais do que uma chave, um critério de formulação de sínteses significativas e significantes para o diagnóstico e luta. A realidade não pode e nunca será reduzida a uma chave, por mais importante que ela seja. Na prática, porém, a esquerda mundial cometeu e ainda comete muitos equívocos por simplificar as relações, processos e estruturas, os ideários mobilizadores e as forças políticas em luta no capitalismo a essa chave e seus poucos segredos.
E como fica tudo que explica a vida e sua sustentabilidade, que nunca se reduziu e nunca se reduzirá à produção, à exploração direta do trabalho, à economia, enfim? O feminismo não se limita a denunciar a exploração e dominação do patriarcado. Talvez seja a mais radical contestação do capitalismo enquanto tal pelo que atenta à vida, à produção e reprodução da vida, de todas as formas de vida, que combinam dimensões ecossociais, de cuidado, de convivência e de compartilhamento, no interstício das sociedades históricas e na relação com a natureza.  O capitalismo existiria sem a reprodução da vida? Ou de outro modo, o capitalismo seria possível sem se alimentar e fomentar todos os conjuntos de relações de mercantilização, exploração, dominação, desigualdade, discriminação e intolerância presentes no viver numa sociedade capitalista? Na realidade, é o próprio sistema capitalista que conhecemos que determina e depende de tais relações múltiplas, alimentando-se delas como parte de sua própria essência de modo de produção.
Sei que isso coloca no centro da reflexão o que são as contradições principais ou centrais para analisar o capitalismo de modo dialético: como decompô-lo para diagnosticar e recompô-lo como um todo pensado prenhe de sentido, identificando fortalezas e debilidades para saber como incidir nele e transformá-lo? Será que existe uma contradição principal em abstrato histórico, sem situações concretas onde se realiza e se imiscui em todas as relações sociais possíveis, formando “blocos históricos” férreos, como nos lembra Gramsci.
O feminismo, como outros movimentos fundamentais considerados dominantemente como lutas identitárias em relação à questão das classes sociais, pode ser visto como não determinante das próprias relações de classes sociais? Ou, de forma mais radical, dá para fazer análises consistentes de classes sociais sem história, sem as sociedades permeadas de múltiplas relações e contradições? Poderia existir capitalismo assentado somente nas relações de trabalho assalariado, sem patriarcalismo e sem racismo, sem homofobia, sem discriminações e fundamentalismos de todo tipo, sem colonização permanente de uns povos por outros, expropriando territórios e recursos? Claro, nenhum capitalismo existe sem propriedade privada, a radicalidade extrema. Mas não foi ele que inventou a propriedade, mesmo a tendo estendido até a propriedade privada para além dos bens comuns naturais e à moeda, chegando a gente (escravidão e servidão), aos corpos, ao saber, à cultura, aos dados pessoais, aos DNAs e aos genomas, enfim a tudo o que pode ser mercantilizado. Mas o pilar propriedade privada excludente, ter ou não ter posses, não se realiza num vazio social, cultural e político. Está ancorado em toda a vida, determinada a própria vida e a todas as dimensões da sociedade. O patriarcalismo sempre foi e ainda é uma forma de apropriação privada do corpo das mulheres pelos homens. E sem ele não é possível entender o capitalismo. Como não é possível entendê-lo sem o racismo, outra parte intrínseca de sua emergência e existência histórica como sistema.
Acho que aqui entro em cheio no ponto de impasse em que me encontro pessoalmente como analista e ativista identificado em questões de cidadania, entendida como categoria analítica e prática fundamental no mover-se e fazer-se da história da humanidade, cidadania em busca de igualdade com liberdade e respeito à diversidade. Sou levado a afirmar que a questão da identidade social e da emancipação – condição e consciência da individualidade e do poder decidir livremente o que e como fazer e levar a própria vida, sempre no seio de uma teia de relações sociais de cuidado, da convivência e do compartilhamento da vida – é atributo intrínseco da cidadania, do ser e se sentir cidadania em sociedades de exploração, dominação, patriarcalismo e machismo, racismos e intolerância fundamentalista de todo tipo. Estou falando da história contemporânea, pois cidadania como conceito político ativo e mobilizador é uma conquista muito recente para a humanidade, e nem dá conta de todas as lutas por emancipação social e histórica.
Penso que devemos muito aos feminismos e à luta antirracista o fundamental da reflexão política sobre a importância estratégica da identidade social nas lutas por emancipação e contra o capitalismo, visando sua transformação. Sem dúvida, uma contribuição também essencial vem da tradição de movimentos operários e sindicais pelo mundo. Afinal, ninguém se mobiliza se não se conscientiza previamente sobre quem é e porque é tratado assim, sem uma identidade social condição prévia da emancipação.  A identidade social, como conceito, é uma abstração. Como prática, a identidade social sintetiza o que a gente se torna, pelas relações e vida que leva, lugar que ocupa, experiências cotidianas, lutas e sofrimentos vividos, como a gente se vê e como as outras e os outros nos veem, a identidade que nos atribuem, as relações de poder na sociedade. É uma síntese histórica em permanente renovação pelo ato de viver. Pode ser afirmação positiva de autonomia, que nos dá autoestima, ou ser identidade imposta e sofrida, dado o intrincado das relações de domínio, subordinação por convenções e contratos, ou pela força bruta, presentes no cotidiano em que vamos vivendo. As identidades sociais para não ser abstrações analíticas somente, sem sentido prático, contam historicamente quando configuram identidades sociais, culturais e políticas em ação, se somam e se fundem, formando “blocos históricos”, sujeitos coletivos em ação, movimentos e organizações sociais, até partidos, num intrincado de valores éticos, visões e propostas compartilhadas entre semelhantes (o nosso lado) em oposição a forças negadores e opressoras de nossos direitos de identidade e emancipação social. No meio muitos “diferentes”, possíveis aliados, mas na maior parte das vezes, ainda não organizados coletivamente, não tendo construído sua própria identidade social.
Tudo isso, com a complexidade que carrega, para virar força de oposição e transformação do capitalismo e a insustentabilidade da vida que seu modo de ser aponta, de destruição ecológica e social, é uma tarefa coletiva. Na atualidade, a maior inspiração transformadora vem exatamente dos movimentos feministas e seu impacto. Isso tem enormes implicações para a renovação de pensamento radical e a disputa de hegemonia para outro mundo.

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