Cândido Grzybowski
Sociólogo, presidente do Ibase

Em meio ao isolamento físico que grande parte da humanidade está vivendo, com a pandemia do Covid-19 como ameaça, surgem muitas reflexões inspiradoras sobre a vida e a sociedade. Uma espécie de redescoberta coletiva de que temos grandes bens comuns indispensáveis, que não podem ser dependentes do mercado. Mas também nos deparamos com monumentais desafios, ameaças e incertezas sobre como mudar tudo isto. Cuidado, convivência e compartilhamento entre todas e todos, eis tarefas eminentemente sociais que vão se delineando como tarefas indispensáveis para enfrentar este momento e garantir a saúde de todo mundo, bem como sonhar com outro mundo no pós-pandemia. Como transformar tais princípios em pilares estruturantes de um novo paradigma biocivilizatório, ecossocial e democrático?
Construir e disputar a hegemonia desde os territórios em que vivemos e gerar irresistíveis movimentos de cidadania planetária como sujeitos da transformação é o maior desafio. Claro, a consciência social que emerge forte, em meio à pandemia, de formarmos uma comunidade de destino e de compartir os mesmos problemas e desafios como humanidade é uma potencialidade a ser mobilizada. Temos, como patrimônio humano, uma fantástica diversidade de modos de viver locais para inventar soluções e alternativas adequadas à preservação da integridade do extraordinariamente vivo e diverso planeta, antes que o capitalismo predador e homogeneizador complete sua sina destrutiva da natureza no afã de crescer e acumular. São sinais que estamos redescobrindo em meio às angústias e ameaças do momento.
No entanto, precisamos ter presentes a crua realidade econômica e política imediata em que estamos mergulhados, do local ao mundial. Apesar das especificidades nacionais e da enorme crise econômica em curso, todos os povos do Planeta estão sendo dominados e explorados por um sistema global neoliberal capitalista sob o controle de um punhado de grandes corporações econômicas e financeiras. Livre mercado e mercantilização de tudo é sua regra na busca da acumulação sem limites, a serviço do 1% e seus asseclas. Tais atores privados têm meios e poder para se recompor e impor sua (des)ordem global, voltada ao crescimento e à acumulação às custas da humanidade e da natureza que nos dá vida. Mais barbárie é, sem dúvidas, um cenário possível. Cabe a nós, nascente cidadania planetária, impedir isto.
Começo por estabelecer um princípio básico, epistemológico e prático: a história humana se faz pela ação de blocos de forças que combinam situações dadas, herdadas de condições e ações passadas, materializadas nos territórios e nas sociedades que interagem com eles, com opções e ações do presente. Ou seja, é na disputa e na luta, nas contradições em movimento, que se faz a história, pois nada está predestinado e definido de antemão, por mais bárbaro ou difícil que pareça. A vida humana é um fazer-se vivo e de gente, nas boas e nas piores condições, não um mero desabrochar de uma determinação pré-definida. Afirmo isto por discordar dos e das que, diante das reais e evidentes dificuldades do presente, não conseguem ver alternativas. Nunca considerei qualquer análise consistente quando ignora as contradições inerentes às relações sociais e processos históricos. As possibilidades e alternativas existem, mas precisam ser identificadas e, até, trabalhadas cultural e politicamente. Como afirmava o genial Augusto Boal, você pode inventar o futuro ao invés de esperar por ele. Nada virá dos poderes de fato existentes e que mandam no mundo. Outro futuro possível é uma questão de ativismo de cidadanias com suas diversidades, mas em sua igualdade de direitos pelos comuns e pela vida, a partir dos territórios, abraçando o Planeta, a Gaia de que somos parte. Cabe às cidadanias, como sujeitos coletivos históricos, assumir a tarefa de definir, antecipar e atuar a partir de um olhar e uma perspectiva de futuro.
Outro elemento fundamental é o lidar com a incerteza, pois nada está definido. Como afirma Edgar Morin, a partir de seu isolamento social em Paris: “…a incerteza permanece um elemento inexpugnável da condição humana. (…) Viver é navegar um mar de incertezas, através de ilhotas e arquipélagos de certezas nos quais nos reabastecemos.” E arremata dizendo que para a humanidade como uma comunidade de destino “…amor, amizade, comunhão, solidariedade são o que fazem a qualidade da vida”.
Há uma questão emergente e que se impõe como incontornável para a humanidade neste momento de pandemia da Covid-19: a prioridade da vida. Mas muitos, a começar por nosso fascista capitão feito presidente, elegem a economia como prioridade desprezando as vidas em risco. De fato, temos uma economia que prioriza o mercado e o crescimento contínuos, contra toda forma de vida e o planeta, para satisfazer seu afã de acumular riquezas. Mas um princípio elementar da economia para ter sentido é produzir condições de vida e não a ela se opor. Esta oposição entre economia capitalista e vida nunca emergiu como uma consciência cidadã de dimensões planetárias como agora.
A Covid-19 pôs em cheque os sistemas de saúde em suas enormes insuficiências e deficiências, estejam esses sistemas ao Norte, ao Sul, a Leste ou a Oeste. Mais: revelou o enorme engodo que foi e está sendo o desmonte, a privatização, a mercantilização e a dependência dos sistemas e políticas públicas de saúde de empresas e mercados movidos pelo maior lucro possível. O rei ficou nu. Estamos morrendo diante de uma pandemia, até previsível, porque para o mercado ela é apenas um problema perturbador, podendo até virar mais uma grande oportunidade de negócios, mas não uma prioridade da vida sobre a economia. Pelo contrário, com a globalização de negócios e mercados, o capitalismo que temos deu à pandemia uma dimensão global, transportando o vírus pelas conexões e viagens de que depende para se realizar. Ou alguém duvida da íntima conexão entre New York, o centro financeiro estratégico, com a metrópole chinesa em que surgiu o coronavírus e daí se espraiando pelo mundo todo?
Aqui surgem muitas questões que precisamos elaborar como cidadania diante da falta de capacidade política e operacional dos sistemas de saúde pública para nos proteger, além da enorme desigualdade social no acesso no interior de cada país, entre os diferentes países do mundo. Com a pandemia, constatamos que a saúde é territorial e socialmente determinada. Ela escancara a desigualdade no interior das sociedades e entre os diferentes povos do mundo. Só resta nos cuidarmos mutuamente e contar com a solidariedade coletiva, nos confinando em isolamento físico, para não propagar o vírus numa velocidade desastrosa. Claro, mesmo sem meios, devemos reconhecer a total abnegação e compromisso das equipes de profissionais de saúde, que estão pagando com a própria vida para tentar salvar o maior número de pessoas.
Saúde é um bem comum por excelência. Ninguém se safa de uma pandemia de forma individual, pois ela não escolhe a quem e como infecta. Neste sentido, a saúde é sempre política, mas não exclusiva e nem prioritariamente estatal. Como bem comum e público, a saúde é uma questão de cidadania, determinada pelas relações de forças e luta de classes. Se não zelarmos pela saúde coletiva, não serão o Estado ou as empresas/mercado que irão zelar. Isto a pandemia jogou na nossa cara, independentemente das posições na estrutura de classes e das opções políticas, dos Estados Nacionais, das regiões e dos blocos. Eis aí uma grande oportunidade para pensar em prioridades na escolha de alternativas de amanhã, mesmo ameaçadas pela pandemia no imediato.
Precisamos repolitizar a questão da saúde como questão de vida da e na sociedade e não somente como capacidade dos Estados em garantir atendimento e cura no caso de necessidade e doença. Afinal, ter saúde é um modo ecossocial de viver (natureza, cidadania, economia, política, cultura…) com autonomia, interdependência e solidariedade com outras e outros e com o respeito à integridade da natureza, com o mínimo de ameaças. Pensando assim, uma primeira resposta a um debate do momento é que a saúde é um bem coletivo/comum que deve determinar o tipo de economia necessária e não o contrário, a economia acima da saúde. Temos diante de nós uma das maiores contradições do sistema capitalista jogada na nossa cara como humanidade. O que importa é a sustentabilidade da vida e não do sistema econômico que a ela deveria servir.
De um ponto de vista ético e político, por mais importante que seja a questão epidemiológica e técnica relacionada com a Covid-19, como cidadania planetária precisamos enfrentar a questão da virologia política, como nos alerta Marx J. Gómez Liendo: trata-se de “…pensar o amplo conjunto de transformações sociais, cognitivas, técnicas, políticas, econômicas e ecológicas que estão em disputa devido a dinâmicas sociais multiescala e  um marco assimétrico de relacionamento entre atores e grupos humanos e não humanos” (em tradução livre).
Estamos diante de um modelo civilizatório, ele mesmo viralizado e de grande poder destrutivo, cujas relações, estruturas e processos são negadores de igualdade de direitos humanos para todas e todos, em nossa diversidade, e da biosfera, bem como da integridade dos sistemas ecológicos do planeta, bem comum maior de que dependemos para viver. A pandemia é expressão das desigualdades sociais, da exploração, da dominação e das múltiplas destruições ecológicas intrínsecas ao capitalismo e seu desenvolvimento como modo de produção e consumo, valores e visões sobre o humano e o viver. Em síntese, o coronavírus não é o inimigo. O inimigo é a globalização predadora e a ruptura metabólica que, em sua expansão, o capitalismo provoca com seu desenfreado extrativismo da natureza para crescer sem limites.
Aqui entramos num terreno já pautado por importantes analistas com críticas consistentes sobre um setor estratégico, a agricultura como agroindústria e agronegócio, essencial na produção de alimentos para a reprodução da vida, portanto da humanidade. De forma mais abrangente, estamos diante da colonização e do extrativismo, em sua constante expansão sobre áreas florestais protegidas no Planeta, sem reconhecer limites ecossociais, tudo em busca do lucro.
A Covid-19 é uma resposta, disruptiva e mortífera, da natureza à agressão que a sociedade atual, dominada pelo capitalismo, faz a ela. Vou me valer da ativista e amiga Vandana Shiva para sintetizar a questão: “…esta pandemia não é um desastre natural, assim como fenômenos climático extremos também não. As epidemias emergentes, assim como a mudança climática, são antropogênicas, causadas pelas atividade humanas”. Vandana lembra que, nos últimos 50 anos, surgiram 300 novos patógenos, por nós liberados ao terem destruído o seu hábitat, as florestas e seu equilíbrio metabólico. E conclui que estamos diante de uma “guerra antropogênica” contra a integridade do planeta e a biodiversidade. As importantes e consistentes análises e alertas de integrantes da entidade ETC, do Canadá, seguem o mesmo sentido crítico ao modelo agroindustrial e às soluções tecnológicas apregoadas pelo sistema que não domina. Também destaco aqui o dossiê esclarecedor de Red Wallace e outros, com o título “COVID-19 and Circuits of Capital”, publicado pela Monthly Review. Enfim, concordando com a brilhante reflexão de Maristella Svampa, o inimigo que temos é a “…globalização predatória e a relação instaurada entre capitalismo e natureza.”
Aqui cabe lembrar a ameaça que, no Brasil, está sendo produzida e pode viralizar como pandemia global. Temos um extrativismo e um agronegócio dos mais agressivos e impactantes do mundo, sem falar de sua importância como provedor de alimentos e matérias primas para a pantagruélica globalização. Ainda mais neste período recente do “liberou geral” e “vale tudo”, com o capitão presidente. Podemos estar criando as condições para sermos os protagonistas na mutação natural que faz com que os vírus das florestas, onde convivem com outras espécies, ao perderem seu hábitat, passarem aos humanos e daí… mais uma pandemia, desta vez verde e amarela. Já nos envenenamos com o consumo desenfreado de agrotóxicos e os antibióticos usados na produção intensiva de carnes. Só falta o vírus tupiniquim!
Tenho muitas reflexões sobre temas e agendas de discussão, maturadas nesta quarentena necessária para meu próprio bem, o da família e amigos e de todas e todos. Mas me limito a uma última consideração, surgida na leitura do Manifesto do “Collectif Malgé Tout” (Coletivo Apesar de Tudo, em tradução livre). Concordando com eles, não estamos em guerra. Este discurso é parte do problema. Sofremos com o modelo civilizatório da necropolítica. Não se trata de ganhar uma guerra e fazer um pacto para salvar a economia e o desenvolvimento. Pelo contrário, sofrendo as ameaças e angústias da pandemia e tentando ver mais longe, o depois pandemia, devemos acumular análise, ideias, visões e propostas para resistir ao biopoder e ao controle. Como? Não existe uma resposta pronta. Mas, e isto é fundamental, a emancipação começa a se dar no ato de acreditar que outro mundo é possível e, desde nossos isolamentos, começar a juntar o tijolo com tijolo para viver e praticar a liberdade e a igualdade do amanhã.
Rio, 29/04/20
 
 
 

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