Cândido Grzybowski

Sociólogo, presidente do Conselho de Governança do Ibase

Como em todo verão, a água se impõe como notícia, mais como ameaça de tragédia do que como sistema ecológico essencial à vida e bem comum fundamental. No verão, a ameaça é a sua abundância que chega com tal volume que facilmente nos esquecemos dos períodos de escassez, ao seu modo também vistos como ameaça e tragédia. Mas será a água um problema? Ou somos nós, humanos e nossas sociedades, que não sabemos conviver com a água e tratá-la com o cuidado que merece, pois sem ela nem haveria vida?
Sem dúvida, é lamentável que muitas vidas sejam perdidas e muitas mais destruídas devido às chuvas torrenciais, um fenômeno natural e previsível. Ficamos emocionados ao ver aquelas cenas de gente que perde a vida soterrada pelos deslizamentos ou levada pelas enchentes de riachos transformados em rios invasores pelo volume das chuvas, como o que temos vistos  sobre cidades do Espírito Santo ou o dilúvio que se abateu sobre a Região Metropolitana de Belo Horizonte. Mas poderia, e pode ainda neste verão, ter sido em qualquer outro lugar deste nosso país de dimensões continentais. Afinal, onde está o problema se a água faz parte do ciclo da vida? As mortes podem e poderiam ser evitadas, ao menos mortes fora de hora e lugar, por assim dizer.
Mas a questão da água tem muitos outros aspectos revelados neste verão, como em outros passados. Sempre existem muitas formas de vida e morte associadas à água, por assim dizer. Lembro aqui a verdadeira “tragédia da água” que estamos vivendo, cerca de nove milhões de moradores(as) da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, nesses dias de inclemente verão. Não temos água para beber! O que a Cedae (Companhia Estadual de Água e Esgoto do Rio de Janeiro) fornece como água, além de cheiro e cor repugnantes, pode causar problemas de saúde. Afinal, a empresa não trata a água; na verdade,  processa esgoto e nos fornece como se água tratada fosse. Trata-se de um novo tipo de desastre produzido pelo tipo de modelo de sociedade mercantilizada que temos.
São apenas casos extremos e muito peculiares que lembro aqui, mas reveladores da tragédia que produzimos pelo modo como tratamos a água. A água, como sistema ecológico, é um estoque definido no Planeta, que obedece a um ciclo que combina – não importa onde a gente começa, pois se trata de algo que se renova circulando – evaporação, formação de nuvens, neve e chuvas, nascentes, riachos, rios e mar, nova evaporação e assim segue. Isto de forma simples, pelas evidências do dia a dia. Claro, a frequência do processo e seu ritmo, a sua intensidade, sua ocorrência territorial, obedecem à rotação da Terra, ao ciclo de estações diferenciadas no Norte e Sul, à posição dos territórios em relação ao Equador e aos Polos, enfim, a um conjunto de variáveis ecológicas sistêmicas, já razoavelmente diagnosticadas pela ciência. O que ninguém pode duvidar é da essencialidade da água, como do ar e vários outros sistemas ecológicos que definem a integridade e especificidade de nosso Planeta Terra, condição de todas as formas de vida.
Mas nessa integridade, onde a água é essencial, intervimos, com nossos modos de viver, produzir, consumir e organizar.  O problema das “tragédias” ligadas à água não está nela em si, mas no modo como nós, no modo de nos organizarmos e vivermos, tratamos a água como bem comum. Afinal, somos nós que teimamos em deixar de cuidar da água, não respeitar seu ciclo e sua integridade. Esperamos que as tais tragédias associadas à água não aconteçam com a gente e acabamos atribuindo ao destino a tal fatalidade de chuvas devastadoras ou secas insuportáveis. Até quando?
Lembro aqui uma prática cidadã que mudou a vida de mais de um milhão de famílias no Nordeste, território brasileiro historicamente afetado por secas periódicas. A ASA (Articulação do Semi Árido) com o projeto cisternas de coleta de água de chuva vem mudando substantivamente a vida de muita gente, praticando a “convivência com a seca”. Em outro extremo, temos as tragédias produzidas como a ruptura das barragens de rejeitos – água virada depósito de “esgoto” da mineração – de Mariana e, há um ano, de Brumadinho.
De modo simples, importa afirmar que o problema não está na água em si, sejam chuvas de intensidades variáveis, ou a sua falta. Nem qualquer outro evento associado à água. O problema é a nossa falta de consciência e de gestão da água como bem comum. O caráter de comum não está na água em si mesmo, no que representa, nem no ar, na atmosfera, na biodiversidade, seja lá o que for da integridade do Planeta Terra. A questão é como tratamos esses sistemas ecológicos que garantem a própria vida.
Para ser comum, um bem natural precisa ser visto e tratado como um comum. Bens comuns são socialmente criados como comuns. Talvez a tradição, os costumes, as práticas, enfim relações sociais construídas na história podem ter tratado muitos bens como comuns sem ter a consciência de caráter “social” de comuns. A consciência sobre o quanto comuns são vem com a ameaça ao seu caráter social de comuns, de todos, sem distinção, que a privatização significa. A “tragédia dos comuns”, como a água, está associada à perda de sua percepção como bem comum.
Esta é a questão fundamental para pensar a água. Precisamos resgatar e reafirmar o seu caráter de bem comum, que precisa ser cuidada, compartilhada e reconhecida com um comum sem o qual a própria vida é impossível. A água não é um problema. Governos e empresas podem ser o grande desastre da água. Bem, nós também, se não assumirmos o nosso papel de cidadania na gestão de um recurso natural tão essencial. Isso vai do modo como  usamos e tratamos a água no dia a dia, onde jogamos os  dejetos de nosso viver, como convivemos com nascentes, córregos, rios, praias e mares, o quanto admiramos a chuva em relação ao sol.
Nós aqui no Rio, antes de outras tragédias – da água na torneira ou dos deslizamentos e inundações ou deslizamentos de encostas – precisamos tornar a água como questão social central para a cidadania carioca. Temos no horizonte a ameaça da sombria privatização da Cedae, da radical mercantilização de um bem comum essencial, cujo critério não vai ser outro a não ser o lucro com a venda da água. Mas a especificidade e beleza de nosso território e identidade tem muito a ver com a água, com praias, baía, com planície intermediada por montanhas, com sol e chuva. Nosso patrimônio são nossos comuns específicos, naturais e culturais entrelaçados. Defendamos nossos comuns! Nossos problemas são mais de ordem social, política e econômica do que natural. Viva a água e a vida que nos dá!

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