Cândido Grzybowski*
Sociólogo, diretor do Ibase

Tom Jobim cantou a maravilha do ciclo natural da água. Verão é quente por definição, e chuvas abundantes são esperadas para irrigar e refrescar. Mas um verão quente e seco assim como este de 2014 não me lembro ter vivido desde que passei a me considerar um filho adotado pela belíssima cidade do Rio de Janeiro, em 1979, de volta de Paris. Felizmente, depois de dois meses quase ininterruptos de sol, as águas de março chegaram e o bom humor na cidade como um todo voltou.
A gente esquece facilmente o quanto a água é condição de vida. Parece, e realmente é, natural o ciclo de dias de sol e dias de chuva, as estações, umas mais chuvosas e quentes, outras mais secas e frias. Mas de repente, não mais que de repente, tudo parece fugir da normalidade. Tivemos chuvas abundantes em novembro e dezembro. Na Baixada Fluminense até enormes inundações ocorreram, com muita destruição e sofrimento. Depois veio a estiagem, com pouca chuva e muito, muitíssimo calor. Aí faltou água nas torneiras para muita gente, logo com aquele calor. Agora, a chuva voltou… para fechar o verão, como cantou Tom Jobim.
Afinal, a gente deve se alegrar ou sofrer com a natureza? O fato é que sem ela, os seus recursos, os seus ritmos, as suas abundâncias e faltas, a vida não existiria. A água é sinônimo de vida, mas disto só nos lembramos na sua falta. Há uma lógica nos sistemas ecológicos naturais que são fundamentais à vida. A água é um desses sistemas sem os quais a vida não existiria. A questão para nós, humanos, também seres naturais dependentes dos sistemas ecológicos, é como conviver de maneira sustentável com a natureza. No caso da água, a tomamos como um pressuposto necessário e indispensável, estando aí como um dom natural, sem nos perguntar como a tratamos e cuidamos no nosso cotidiano.
A ONU instituiu o 22 de março como Dia Mundial da Água em 1993, após a Eco-92, aqui em nosso Rio de Janeiro. Mas, reconheçamos, nós não estamos nem aí. Não temos a água com a centralidade
que deveria ter em nossas vidas. Ente nós, convenhamos, há os que usam e abusam…porque podem e pagam… ou não. E há muitos, moradores de favelas e periferias, que penam para ter água, sempre atentos com baldes e bacias para quando a água chegar. O acesso à água é um traço fundamental da injustiça social territorializada em nossa bela cidade.
A água é um direito humano e cidadão fundamental. É isto que precisamos ter claro. Trata-se de um direito a um bem comum, de todas e todos, sem distinção. Não se pode considerar a água como um simples recurso natural. É um bem comum indispensável à vida. Como comum deve ser gerido segundo regras que assegurem a todas e todos os mesmos direitos, sem distinção. Não é, de forma alguma, aceitável o tratamento diferenciado do Estado aos diferentes, pobres e ricos, do asfalto e da favela, do centro e da periferia.
Um bem, como a água, é comum porque na história da humanidade se identificou nele aquelas condições sine qua non da vida humana, de toda a vida, onde sua falta torna inviável viver. A
agressiva mercantilização de tudo transformou até a água em commoditiy. Tudo está à venda, e depende do poder aquisitivo. Mas a vida não é assim. Não é a regra do mercado que pode definir
quem pode viver ou não. A privatização da água e sua comercialização é uma das mais violentas afrontas ao direito humano de viver. Ninguém deveria depender da possibilidade de pagar para ter acesso à água.
Voltando ao início, temos que saudar as águas, de março ou não. Elas são vida. Mas elas destroem, seja pela falta como pela abundância. A falta pode ser seletiva e administrada, nas torneiras – um crime, sem dúvida – como pode ser um fenômeno natural. Nosso Nordeste é exemplo das surpresas, nem tantas por sinal, da natureza, com suas secas previsíveis. Surpresas, também possíveis de gestão, podem ser as repetidas tempestades intensas e destrutivas em algumas regiões do país. Afinal, há que se reconhecer, não consideramos a água como um bem comum que pode ser gerido coletiva e preventivamente como comum. Não temos no Brasil uma verdadeira política de águas, de gestão do bem comum água. A Defesa Civil – o nome já revela – é pós catástrofe, não uma política de gestão de fenômenos naturais que ocorrem regularmente, para os quais precisamos de Ação Civil positiva e reativa, e não meramente reativa, pós desastre.
A água como bem comum precisa ganhar as consciências e o imaginário da cidadania. Precisamos torná-la uma grande questão política. Afinal, água boa é o outro lado do esgoto, que também é
parte do sistema de vida. Como lidamos com isto? Qual a consciência cidadã sobre a centralidade da água e seus derivados na nossa vida? Não adianta esperar que as águas de março resolvam
nosso problema. Precisamos incorporar às reivindicações de cidadania, de justiça e participação, a questão da gestão de bens comuns como a água. Não acabaremos com as surpresas maravilhosas da natureza, mas com uma perspectiva socioambiental de cidadania teremos maior gestão humana de suas possibilidades e limites, para o bem de todas e todos. Celebremos a água como vida neste seu dia.
Rio, 22/03/2014

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