Itamar Silva
Coordenador do Ibase
A favela de Santa Marta existe desde o final dos anos 30. Sua população primeira veio do norte fluminense e de Minas Gerais, e foi adensada com a chegada da migração vinda do Norte e do Nordeste do país, ocorrida principalmente a partir da década de 60. Já a escola alemã Corcovado – EAC, ocupa um terreno que dá frente para a rua São Clemente, também em Botafogo, e, ao fundo, para uma pequena mata que o separa do Santa Marta. O local, antes, serviu como residência do embaixador americano Charles Burke Elbrick, aquele sequestrado no dia 04 de setembro de 1969 e trocado por 13 militantes de esquerda, presos pela ditadura militar em curso no Brasil. Em 1974, a EAC, Escola Alemã Corcovado, passou a funcionar neste endereço.
Lembramos também que ao lado da EAC está o palácio da Cidade, que já foi a casa da embaixada do Reino Unido e também a primeira sede da prefeitura, após a fusão do Estado do Rio de Janeiro e o Estado da Guanabara, em 1975. Esses dados históricos são, simplesmente, para dizer que a favela está ali muito antes da instalação da Escola Corcovado e da sede do governo municipal. No entanto, essa vizinhança ilustre nunca rendeu tratamento particular a esta favela. Para o bem ou para o mal.
O poder público sempre esteve de costas para o seu vizinho mais pobre. Somente na década de 80, com a redemocratização e a criação de estruturas municipais com foco em favelas é que se estabelece uma aproximação. No governo de Saturnino Braga e Jó Resende, é discutida uma proposta integral de urbanização para o Santa Marta com a participação de representantes e moradores. No entanto, projeto não foi levado adiante. No entanto, apenas em 2004 é que um novo projeto de urbanização vai se concretizar na favela com obras que alteram a estrutura viária interna, trazendo mudanças significativas para a população: melhoria das vias internas e no abastecimento de água, construção de um plano inclinado e algumas (poucas) unidades habitacionais. Mas a incompletude do processo, congelado em 2008, não altera substancialmente o padrão urbanístico local. O tempo passa e as favelas seguem ocupando o lugar da provisoriedade na cidade, como se algum dia elas fossem deixar de existir.
A partir do tiroteio ocorrido na última semana na favela de Santa Marta, observamos duas diferentes estratégias protagonizadas pelos moradores da favela e pelos alunos do colégio Corcovado. Pela primeira vez, ao menos registrado pela mídia, o colégio alemão colocou em prática seu protocolo de segurança: ao soar a sirene, alunos e pais presentes no local se deslocaram para um lugar seguro, chamado de “bunker”, construído no subterrâneo do terreno da escola. As atividades não foram interrompidas. Mesmo porque o tiroteio não passou de 20 minutos.
No Santa Marta a estratégia foi diferente. Primeiro porque os tiros aconteceram no mesmo local onde as pessoas moram e circulam. E neste horário, 7h da manhã, o movimento é intenso: pessoas descendo para o trabalho, crianças indo para a escola, mães e pais carregando os bebês para deixá-los na Casa Santa Marta, uma creche berçário na entrada da favela, ou circulando para deixar seus filhos na creche Mundo Infantil, que está instalada no meio do Morro, no beco do Jabuti. Com o tiroteio, a estratégia recomendada seria ficar em casa, de portas fechadas. Mas as casas não são bunkers e a história recente tem mostrado que se morre, inclusive, quando estamos de portas e janelas trancadas nas favelas. Além disso, como convencer aos patrões e patroas que o atraso para chegar ao trabalho foi porque não era possível descer o morro? Então, no caso específico, a única estratégia possível e vivenciada por muitos moradores é a proteção de seus filhos com seus próprios corpos. Abraçá-los com força contra alguma parede, falar alto para dizer que você está ali e que não está armado. E, na maioria da vezes, rezar e contar com a sorte de não ser alcançado por nenhuma bala voadora.
Desta vez, felizmente, ninguém foi ferido na favela de Santa Marta. Mesma sorte não teve o adolescente Marcos Vinícius, na favela da Maré, morto na quarta-feira (20). Um tiro o encontrou indo para escola e, por carregar uma mochila com caneta e cadernos, foi alvejado pela polícia. A mãe de Marcos Vinícius, a jovem Bruna, está em estado de choque. O pai não entende como não identificaram naquele menino um estudante. E se repete o ritual de indignação, raiva, tristeza e revolta solidária que circula pelas redes sociais: “temos que acabar com o lucro da fábricas de armas’; “enquanto não se legalizar as drogas isso não vai acabar”; “é a miséria, uma classe impedindo a outra de ter acessos dignos”; “ o silêncio da sociedade carioca diante do genocídio nas favelas é criminoso”; “temos que dar um basta na criminalização da pobreza”… Esse rosário de indignação tem se repetido com muita frequência nos últimos tempo no Rio de Janeiro.
No entanto, o que me preocupa é o silêncio da maioria. Tenho a sensação de que uma parte significativa da sociedade se sente protegida quando a policia entra nas favelas e faz uma operação midiática. As mortes são sempre justificadas como mal necessário. Mais uma vez a pergunta que clama por resposta é: qual tipo de vida importa?
No dia do enterro de Marcos Vínicius houve protestos. Houve também declarações vazias do poder público e manifestações indignadas de ativistas sociais. E assim seguimos até a próxima morte longe de qualquer suspeita de envolvimento com o tráfico. Sim, friso, sem suspeitas de envolvimento com o tráfico porque as mortes continuaram a acontecer nestes territórios. Se a maioria da sociedade aceita a banalização da vida nas favelas, o Estado segue estimulando a atuação irresponsável das polícias, e o tráfico e a milícia seguem na sua lógica de controle dos territórios, o que sobra para os moradores que vivem na legalidade e deveriam ter garantido seus direitos de cidadãos?