Cândido Grzybowski
Sociólogo, do Ibase
Gerou grande consternação o assassinato da brava vereadora Marielle na noite do dia 14 de março. Num período em que cresce o descrédito na política, Marielle mostrou, em pouco tempo de mandato, que a prática desta, com determinação cidadã e democrática, faz a diferença. Filha de favela, ela se tornou símbolo de ativismo por direitos iguais, especialmente para jovens e mulheres negras e pobres, enfrentando com coragem e sem tréguas as exclusões sociais e violências, o racismo, o patriarcalismo. As balas que mataram a Marielle e seu motorista Anderson têm uma rede de crime organizada por trás de quem disparou a pistola. É fundamental para a democracia que tal quadrilha seja identificada, desmantelada e que os responsáveis recebam o devido julgamento. Mas isto será pouco. Precisamos mudar a cultura e a ética de violência e impunidade que domina em nossa sociedade, condição indispensável para superar as nossas fraturas e segregações que nos dilaceram e matam, e juntos compartir o sonho de um Brasil melhor.
Marielle pagou com a vida a ousadia de se insurgir contra as injustiças sociais e de lutar por direitos humanos para todas e todos, sem discriminações. Algo que ainda parece inaceitável neste nosso Brasil. No clima de crescente ódio e intolerância que se implantou entre nós, mais gente do que imaginamos quer calar a voz de quem defende e promove os direitos humanos. As denúncias que se espalham pelas redes sociais são o sintoma mais evidente disto. Mariellle não foi a primeira e nem a última da longa fila de gente que é morta por buscar uma sociedade de mais igualdade social e dignidade humana entre nós. Mas é emocionante a grande onda que vem se espalhando do Rio para o país e até repercutindo pelo mundo todo num grito só: Marielle presente! Marielle vive! Ela está se multiplicando em muitas vontades e vozes de cidadania, alimentando o ativismo por uma sociedade mais democrática e melhor. É a esperança mobilizadora em meio a dor da perda de uma líder muito querida e alegre em sua luta corajosa.
O assassinato da Marielle acontece neste momento difícil para o Rio, falido e sob intervenção militar, com um governo federal ilegítimo, apoiado por um Congresso dominado por bancadas que se vendem e um Judiciário passivo, quando não conivente. De um ponto de vista democrático, em 30 anos da Constituição de 1988, nunca tanta desconstrução de direitos foi operada em tão pouco tempo, tudo em nome do livre mercado. Milhões são descartados e jogados no desemprego, no trabalho informal, no desalento. A fome se alastra e o país volta a entrar no mapa da fome da FAO. Mas a reação cidadã diante da execução de Marielle é um sinal de esperança que o amanhã poderá ser diferente.
Ainda precisamos afirmar em alto e bom som que defender direitos humanos – direitos de cidadania como no Ibase os consideramos – não é crime. Pelo contrário, defender direitos humanos para todas e todos é condição para dar vida e efetividade à própria democracia. Nada mais oportuno do que isto numa democracia perdendo substância e sendo vilipendiada por ameaças fascistas, aqui entre nós e no mundo todo, em nome da lei selvagem dos mais competentes e espertos ao nível do mercado. Por que é intolerável para poderosos grupos a mera lembrança de direitos humanos iguais para todo mundo, com base na nossa condição de estarmos compartindo a mesma humanidade e o mesmo planeta? Por que os privilégios, as exclusões, as violências, as injustiças, o racismo, o patriarcalismo, a intolerância e o ódio com os pobres, negros, diferentes? Na verdade, as nossas contradições como sociedade estão escancaradas como nunca. No próprio dia em que milhões lamentavam o assassinato de Marielle – a ativista dos direitos humanos – e seu motorista Anderson, os juízes federais fizeram uma mobilização patética em defesa de seus privilégios de corporação como servidores públicos da Justiça. Logo eles e elas, profissionais de Direito, defendendo privilégios como o auxílio moradia como se direito fosse. Isto é uma afronta à memória de lutadoras como Marielle. Direito só é direito se for para todos, pois, numa sociedade democrática para valer, direito define uma relação social e política de igualdade de todas e todos, sem distinção. Considerar privilégios como direitos é o que nos torna uma sociedade profundamente desigual e injusta. Direitos adquiridos, então, são um escárnio.
Em memória de ativistas como Marielle vale a pena lembrar aos nossos juízes e ao conjunto das classes dominantes que ser cidadania numa democracia é ter o direito a ter direitos. E direitos na democracia só são direitos se, com base na equidade, forem iguais a todas as cidadãs e todos os cidadãos. Defensores e promotores de direitos humanos são, ao mesmo tempo, combatentes determinados dos privilégios que as relações e estruturas injustas, historicamente construídas, normalizam como direitos de classe, de exploração e de domínio. Enquanto muitos choravam e se uniam para celebrar sua heroína cidadã, voz forte das periferias desta nossa sociedade excludente, privilegiados juízes pensavam unicamente nos seus próprios bolsos.
É grave para a democracia o que se passa no poder Judiciário. Mas a grandeza e força da voz de Marielle calou tão fundo no seio popular deste país que está fortalecendo aqueles e aquelas que lutam por mais direitos e mais democracia, porque ela se tornou símbolo e esperança de que não podemos desistir diante das adversidades. Juntos na luta democrática podemos ter muita força cidadã para mudar o poder e a economia que excluem e negam direitos, inclusive o próprio Judiciário. Este é o legado cidadão e democrático, humano e ético, que Marielle nos deixa.
Rio, 19/03/18