Por Cândido Gryzbowski
Sociólogo, diretor do Ibase
Crédito: William Kitzinger/Flickr.
Em 13 de dezembro de 2011, no 43º aniversário do fatídico Ato Institucional n 5 (AI-5), foi endereçada, por um conjunto de entidades da sociedade civil, uma carta à Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal com a solicitação para que seja elaborado um Projeto de Lei que, em nome da memória, renomeie a grande ponte de nossa região metropolitana, sobre a Baía da Guanabara. A ponte que faz o elo entre o Rio e Niterói, que integra a região metropolitana e nos liga com o Leste do estado e a Região dos Lagos, usada por milhares de cidadãs e cidadãos, não pode continuar com o nome oficial ponte Presidente Costa e Silva. Isto agride a verdade, a memória e a democracia, pois homenageia exatamente o ditador Marechal Artur da Costa e Silva que, com o AI-5, inaugurou o período mais sombrio da ditadura.
No momento em que vai se instalar a Comissão da Verdade e Memória, instituída por lei, precisamos por a limpo muitos aspectos da nossa história recente, sem revanchismos, mas com senso de justiça e de verdade conosco mesmos, nossos filhos e netos. Não podemos conviver, no cotidiano, com lembranças que agridem a democracia, pois representam a violação de direitos humanos. Não podemos deixar para a história resolver o que precisamos resolver nós mesmos, que convivemos com o que não deveria ter sido feito e não poderá ser repetido. A homenagem a um chefe de Estado que esteve no centro da ditadura e inaugurou um período sombrio de torturas é uma agressão à memória coletiva. Dos milhares de usuários cotidianos, poucos lembram que a Ponte Rio-Niterói tem o nome do ditador do AI-5, menos mal. Mas isto não justifica deixar de repor a verdade da história no seu devido lugar. Logradouros públicos, como pontes, ruas e praças – um bem comum fundamental para a convivência democrática – merecem ter nomes de nossos heróis. Decididamente, Costa e Silva não entra neste rol de figuras a ornar a história nacional.
Uma ponte, como bem comum numa cidade como a metrópole do Rio, tem a sua utilidade determinada pelo fato de ligar partes, integrá-las, uní-las, criando exatamente o senso de compartilhamento e co-responsabilidade. Ela vira nós no sentido pleno de cidadania na cidade comum, de todas e todos. O nome que lhe cabe deve revelar uma tal dimensão simbólica fundamental que uma ponte tem. Por isto, seu nome deve e precisa carregar este simbolismo, senão fica lá como chaga aberta, agressora. Neste momento de ressurgimento da cidade, após ter perdido o seu lugar e sentido de capital do país, rever o que nos une e integra faz muito sentido. Nunca é demais lembrar que as maiores agressões à história do Rio foram, precisamente, no período dos generais ditadores.
É neste quadro que o rebatizar da Ponte Rio-Niterói adquire seu significado maior. A proposta é que ela passe a se chamar ponte Herbert de Souza – Betinho. Betinho foi vítima da ditadura e, perseguido, acabou exilado. Sua volta está simbolicamente associado à Anistia Política. A opção estratégica pela democracia, fez de Betinho e de muitos que retornaram sujeitos fundamentais da democratização do Brasil. Seu papel foi destacado na Constituinte e nas campanhas cívicas posteriores, onde se sobressaem o movimento pela “Ética na Política” e a “Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e Pela Vida” (a Campanha contra a Fome). Betinho lembra vida e democracia, não a ditadura e a tortura política de Costa e Silva.
Mas há outros fatos que merecem ser lembrados para homenagear a nossa ponte com o nome de Betinho. Ele foi o instigador do “Se Liga Rio”, que procurou levantar a moral da cidade do Rio em plena crise, em 1989. Em 1991, com um visionário, animou o grande evento no Aterro do Flamengo “Terra e Democracia”, que antecipou em 1 ano a Eco-92 e o que ela significa para a humanidade. Seu papel como homem público dedicado ao combate das injustiças sociais, com paz e participação democrática, torna-o emblemático da própria noção de cidadania entre nós. A verdade e a memória coletiva ganham muito ao denominar uma ponte de elo e união democrática, com o seu nome. Ainda mais neste momento em que, finalmente, nos decidimos por repor as coisas no lugar.
Mas tem mais. Betinho adotou o Rio de Janeiro como sua cidade. Natural de Bocaiúva, Minas Gerais, pôs o Rio de Janeiro no centro de sua vida de intelectual ativista. Betinho gostava do Rio e de seu povo, suas paisagens, com o Corcovado, o Pão de Açúcar, a Baía e Niterói, do outro lado. Era uma apaixonado pela causa de gente simples, pelo elo entre pessoas e grupos. A ponte, espero que futura ponte Herbert de Souza – Betinho, possa deixar para a história um tal legado de cidadania e dedicação à causa dos direitos humanos e da justiça social, a bem da verdade e da memória.