Por Raquel Rolnik
texto originalmente publicado em seu blog
Domingo, 22 de janeiro de 2012, 6h da manhã, São José dos Campos (SP). Milhares de homens, mulheres, crianças e idosos moradores da ocupação Pinheirinho são surpreendidos por um cerco formado por helicópteros, carros blindados e mais de 1.800 homens armados da Polícia Militar. Além de terem sido interditadas as saídas da ocupação, foram cortados água, luz e telefone, e a ordem era que famílias se recolhessem para dar início ao processo de retirada. Determinados a resistir — já que a reintegração de posse havia sido suspensa na sexta feira – os moradores não aceitaram o comando, dando início a uma situação dramaticamente violenta que se prolongou durante todo o dia e que teve como resultado famílias desabrigadas, pessoas feridas, detenções e rumores, inclusive, sobre a existência de mortos.
Nos últimos 08 anos, os moradores da ocupação lutam pela sua permanência na área. Ao longo desse tempo, eles buscaram firmar acordos com instâncias governamentais para que fosse promovida a regularização fundiária da comunidade, contando para isto com o fato de que o terreno tem uma dívida milionária de IPTU com a prefeitura. O terreno pertence à massa falida da empresa Selecta, cujo proprietário é o especulador financeiro Naji Nahas, já investigado e temporariamente preso pela Polícia Federal na operação Satiagraha. No fim da semana, várias foram as idas e vindas judiciais favoráveis e contrárias à reintegração, assim como as tratativas entre governo federal, prefeitura, governo de Estado e parlamentares para encontrar uma saída pacífica para o conflito.Com o processo de negociação em curso e com posicionamentos contraditórios da Justiça, o governo do Estado decide armar uma operação de guerra para encerrar o assunto.
03 de janeiro de 2012, região da Luz, centro de São Paulo. A Polícia da Militar inicia uma ação de “limpeza” na região denominada pela prefeitura como Cracolândia. Em 14 dias de ação, mais de 103 usuários de drogas e frequentadores da região foram presos pela polícia com uso da cavalaria, spray de pimenta e muita truculência. Em seguida, mais de trinta prédios foram lacrados e alguns demolidos. Esta região é objeto de um projeto de “revitalização” por parte da prefeitura de São Paulo, que pretende concedê-la “limpinha” para a iniciativa privada construir torres de escritório e moradia e um teatro de ópera e dança no local. Moradores dos imóveis lacrados foram intimados a deixar a área mesmo sem ter para onde ir. Comerciantes que atuam no maior polo de eletroeletrônicos da América Latina, a Santa Efigênia , assim como os moradores que há décadas vivem ali, vêm tentando, desde 2010, bloquear a implantação deste projeto, já que este desconsidera absolutamente suas demandas.
08 de novembro de 2011, 05h10 da manhã, Cidade Universitária, São Paulo. Um policial aponta a arma para uma estudante de braços levantados, a tropa de choque entra no prédio e arromba portas (mesmo depois de a polícia já estar lá dentro), sem deixar ninguém mais entrar (nem a imprensa, diga-se de passagem), nem sair, tudo com muita truculência. Este foi o início do processo de desocupação da Reitoria da Universidade de São Paulo, ocupada por estudantes em protesto à presença da PM no Campus. Os estudantes são surpreendidos por um cerco formado pela tropa de choque e cavalaria, totalizando mais de 300 integrantes da Polícia Militar. Depois de horas de ação violenta, são retirados do prédio e levados presos mais de 73 estudantes. Camburão e helicópteros acompanham a ação.
O que estes três episódios recentes e lamentáveis têm em comum?
Os três eventos envolvem conflitos na gestão e ocupação do território. Os três são situações complexas, que demandariam um conjunto de políticas de curto, médio e longo prazo para serem enfrentados. Os três requerem um esforço enorme de mediação e negociação. Entretanto, qual é a resposta para esta complexidade conflituosa? A violência, a supressão do diálogo, o acirramento do conflito.
Alguém poderia dizer — mas por quê os ocupantes do Pinheirinho resistiram? Por que não saíram imediatamente, evitando os feridos e as feridas da confrontação?
Porque sabem que, para quem foi “desocupado” ou “lacrado” nestas e outras reintegrações e “limpezas”, sobra a condição de sem-teto. Ou seja, para quem promoveu a reintegração ou a limpeza, o fundamental é ter o local vazio, e não o destino de quem estava lá, muitos menos as razões que levaram aquelas pessoas a estar lá naquela condição e seu enfrentamento e resolução. “Resolver” a questão é simplesmente fazer desaparecer o “problema” da paisagem.
Mais grave ainda, nestas situações a suposta “ilegalidade” (ocupação de terra/uso de drogas) é motivo suficiente para promover todo e qualquer tipo de violação de leis e direitos em nome da ordem, em um retrocesso vergonhoso dos avanços da democracia no país.