Rio de janeiro, 02 de fevereiro de 2015
Cândido Grzybowski
Sociólogo, diretor do Ibase
Tudo parece estar fora de lugar nesta conjuntura. A gente até fica meio paralisada diante de tantos desafios. Não sabe qual questão enfrentar primeiro. O fato é de nunca me senti assim, como naquela situação da canção “…Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come.” Talvez seja um choque e este calor infernal, mas de fato não consigo ver notícia boa neste começo de ano. De um lado, corrupção profissionalizada na Petrobras, patrimônio público emblemático. Balas “nada perdidas” que matam quase em qualquer lugar público, de outro. O tal do tempo, do clima, algo sem dono porque bem comum de todo mundo, dada a nossa falta de cuidado com sua frágil integridade, faz faltarem chuvas que refrescam e água nas torneiras. A própria energia elétrica está ficando mais cara e começa a escassear. Muita gente perde ou teme perder o emprego. Lá no distante Planalto, a presidenta Dilma montou um governo que mais parece um monte de partidos sem nexo num mesmo palácio do que uma coalizão política programática para governar a gente. E para azedar a cidadania de vez, ministros brasileiros vão a Davos paparicar os mandões das grandes corporações econômico-financeiras e seus servidores. Afinal, nossos ministros exercem os cargos governamentais em nosso benefício, cidadania do Brasil, ou para eles, os donos do mundo? E agora temos um Congresso Nacional com Renan reeleito no Senado e Cunha à frente da Câmara. Que sina! Merecemos isso?
Por enquanto dá para ir levando… até o Carnaval chegar. Depois é que a coisa ficará feia de vez. Nada de notícia boa no horizonte. Esta, se vier, tem poucas chances de vir das instituições governamentais em seus vários níveis. Cortes e contenção de gastos públicos são um espécie de receita mágica, tudo para agradar os tais mercados – sejamos claros, os que investem e ganham especulando, sem nada produzir. E as carências na saúde, educação, mobilidade e segurança, para lembrar as mais evidentes, só vão aumentar. Talvez a coisa mais certa neste começo incerto de 2015 seja o fato que será um ano difícil em várias frentes.
Como sempre, algum sinal de mudança só poderá vir da cidadania deste país. Mas, sinceramente, quais os sinais, além de um generalizado mal estar? Sem dúvida, conversar e debater, sem se cansar, é uma poderosa forma de criar consensos e aglutinar forças para a ação cidadã. A liberdade de pensar e agir é, por essência, o ser cidadão numa democracia e a mais poderosa arma instituinte e constituinte. Para exercer nosso protagonismo, porém, precisamos nos juntar e fazer emergir de dentro de nós o ideário mobilizador. Tudo vale para isto, desde momentos de encontro no trabalho que viram debate de conjuntura, à busca dos “nossos” por aí, para um papo livre na praia, no bar, no restaurante, na casa ou no sítio, como é meu caso. Podemos conectar-nos aos que já estão tentando ver o que fazer, é só bisbilhotar nas redes que a gente até pode se surpreender com certo ativismo micro, mas que está se espalhando.
Tenho defendido uma ideia bem gramsciana de que o momento é de construção de “trincheiras” cidadãs. Primeiro, para nos proteger, uma espécie de rede cidadã de defesa diante de direitos ameaçados. A melhor defesa é estar junto, compartindo conhecimentos e dúvidas, decidindo juntos o que e como fazer para evitar que o pior aconteça. Sim, não tenhamos dúvidas, só a cidadania organizada pode evitar que o pior aconteça num momento assim. Mas existe uma segunda razão para construir “trincheiras” cidadãs, de dimensão mais estratégica e ativa. Trata-se de a gente se preparar, se fortalecer, de criar as condições para ações de conquista. Esta é uma tarefa que pode ser longa, de muita paciência.
Penso em “trincheiras” neste difícil momento da sociedade brasileira – e num certo sentido no mundo todo – pois precisamos reinventar e, como dizem as feministas, democratizar a democracia. A onda das últimas três décadas se esgotou. Ela perdeu inspiração e capacidade de promover mudanças democráticas, como está muito evidente no Brasil e na América do Sul. Mas vale também para a Europa Ocidental, onde a volta de um neoliberalismo agressivo provoca de tudo, de ajustes que geram desemprego em massa até xenofobia e intolerância, com desmonte de políticas promotoras de direitos sociais e dando espaço para a expansão de direitas fascistas. Não é muito diferente nos EUA, Canadá e no violento México. Da emergente China é que não pode vir exemplo, com seu capitalismo autoritário capaz de milagre econômico, mas nada democrático e sustentável.
Enfim, precisamos “voltar às bases”. Desta vez não para combater a ditadura, mas, talvez, para prevenir-nos dela e, sobretudo, para darmos a volta por cima. Não podemos, daqui a dois anos, eleger prefeitos que dão as costas para a cidadania, como se fossem donos do pedaço, que não precisam prestar contas a ninguém. Não podemos, daqui a quatro anos, eleger um Congresso Nacional tão fisiologista e patrimonialista como o atual, o prior desta República pouco republicana que temos. Precisamos de partidos que exprimam a diversidade de correntes políticas da cidadania e não aparatos oportunistas de assalto aos recursos públicos. Acima de tudo, necessitamos de “trincheiras” para nos recriarmos como cidadania ativa, construtora e defensora da democracia substantiva, de participação, de igualdade e de sustentabilidade socioambiental.