Cândido Grzybowski
Sociólogo, do Ibase
Com a proximidade do Natal e Ano Novo, datas fortes de celebração da vida em nossa cultura, sou sempre levado a momentos de meditação sobre o que passou, o que vem, o que vai e o que será. Nunca é igual, pois a mudança é algo próprio da vida, muitas vezes de forma sutil em meio a permanências, outras, de forma brusca com verdadeiras rupturas. O fato é que segue “o trem da vida”, um dia após outro, renovando-se sempre. A nós é dado o dom de vivê-la num tempo histórico, curto ou longo, com começo e fim certo de um ponto de vista individual. Mas a vida segue.
Tais pensamentos me tomam com mais força este ano pois, na semana passada, faleceu meu mano mais velho. Foi como perder algo de mim mesmo, sensação que se repete a cada morte de alguém muito próximo. A gente fica remoendo lembranças, carinhos e afetos, desde a infância. Aqueles momentos de convivência forte, as separações e distâncias que vieram com trajetos percorridos pela a vida de cada um, os reencontros sempre novos, todas são imagens que invadem a memória, algo como estar olhando um álbum fotográfico de instantes que só a gente vê. As festas de Natal e Ano Novo sempre foram momentos muito especiais no seio de minha família. O que consigo dizer nesta hora é obrigado do fundo do coração, mano Fabiano, por tudo o que você deu convivendo com a gente.
A vida, com seus infindáveis e indecifráveis segredos, continua. Seres vivos nascem e morrem. Acaba a individualidade, como ser vivo singular, mas não a vida como um dom que se reproduz em enorme variedade de formas. Nós, humanos, dotados de consciência, somos uma parcela dos seres vivos que constituem a enorme diversidade de vidas na biosfera, todas interdependentes entre si, como uma teia. A nossa vida e de todos os seres vivos é um bem comum fundamental da humanidade. Ela existe sendo compartida e sua condição fundamental é o cuidado. Pensar na vida é encantar-se com o seu acontecer, sempre surpreendente. A própria morte é um acontecer que completa a vida.
Debruço-me cada vez mais sobre estas questões. Em torno a elas criamos filosofias e religiões, como algo próprio do viver como humanidade. Certas ideias se impõem como senso comum e deixamos que elas passem a ser uma espécie de referência guia no cotidiano, nossa ética, definindo práticas e comportamentos. No geral, nem nos damos o direito de duvidar da tal modo de pensar. Simplesmente vamos levando a vida. Deixamos de pensar como chegamos ao ponto em que estamos como coletividade que comparte o dom da vida e que ela depende da relação que temos uns e umas com os outros e outras, em sociedade, e da relação que temos com todos os seres vivos da biosfera, o tipo de civilização que construímos.
Basta olhar à nossa volta para ver que o dom da vida é negado para muita gente. São existências que se interrompem sem se completar. Convivemos com muitos assassinatos e guerras que são negação do direito de viver. Muita gente morre de fome ou da falta de acesso a cuidados de saúde. Por quê? A normalização disto é uma negação radical da vida para pessoas concretas, as que sofrem e morrem por isto, mas também para nós todos que compartimos o bem comum da vida. Todas e todos temos o mesmo direito de viver na medida em que reconhecemos, ao mesmo tempo, a nossa responsabilidade individual e coletiva pelo direito dos demais. Viver plenamente a vida é cuidar dela como um comum.
Mas o cuidado está longe de ser um princípio fundamental na organização de toda a vida em sociedade, tendendo a ficar restrito ao âmbito familiar e, em particular, como um encargo das mulheres. Precisamos voltar a colocar no centro da economia, da relação com a natureza, da relação entre nós, nas leis e práticas, no poder e nas políticas, na cultura e no cotidiano, o cuidado com a vida como o eixo integrador. A dissociação entre economia e o cuidado com a vida nos levou ao que vivemos: economias contra sociedades e contra a natureza, produtoras de exclusões, desigualdades e muita destruição. Na origem, o conceito de economia tem a ver com o cuidar, com a gestão das condições de vida.
Que viver o segredo da vida em sua plenitude nos inspire sempre e seja um direito compartido incondicionalmente entre todas e todos, de geração em geração! É isto que precisamos buscar com persistência, determinação e ousadia. Mesmo quando sofremos com perdas de entes queridos que teceram com a gente a vida até aqui.
Rio, 04/12/17