Foto de Chiara Trevisin – Fonte: Flickr
Cândido Grzybowski
Sociólogo, do Ibase
Por mais que a gente tente pensar para além das turbulências das conjunturas, o fato é que estamos vivendo, aqui e agora, num lugar e tempo determinado da história da humanidade e do nosso ameaçado planeta Terra. O modo como enfrentamos as contradições e confusões do nosso presente são, ao mesmo tempo, uma moldagem de possibilidades ou limites para gerações futuras viverem. É a nossa pegada ecológica e histórica. Por isto, por mais que queiramos, não dá para imaginar outros futuros ignorando o que fazemos no presente, que já os compromete.
Na semana que passou, foi feito mais um leilão da Agência Nacional de Petróleo (ANP) de áreas de exploração do petróleo, acontecimento festejado pela grande mídia e pelos círculos da elite empresarial e financeira como um passo fundamental no tal “rumo certo” do gerentão Meireles, representante do grande capital no Governo Temer. Trata-se de uma entrega a corporações petroleiras globais das grandes e cobiçadas reservas de petróleo e gás no Brasil, particularmente do pré-sal, tendo por base as recentes mudanças introduzidas no marco regulatório, com o fim da partilha de produção e a volta da concessão pura e simples. De um ponto de vista socioambiental e democrático de futuro, o que estava ruim se tornou ainda pior.
A questão da exploração do petróleo é complexa e difícil de ser tratada no curto espaço de uma crônica. Mas é fundamental ressaltar alguns pontos básicos nela envolvidos no esforço que estou fazendo de mapear nossa tarefa coletiva de pensar para além de resistências a este governo nada legítimo. Começo por destacar o lugar que ocupa o petróleo como bandeira símbolo de possibilidade de conquistar o almejado desenvolvimento soberano do Brasil. Desde o século passado, particularmente desde o após II Guerra Mundial, o petróleo ocupa um lugar privilegiado no imaginário coletivo brasileiro e nas estratégias políticas e econômicas de desenvolvimento. Em torno ao lema “O petróleo é nosso” dá, até, para fazer uma linha do tempo dos grandes embates e conjunturas políticas vividas pelo Brasil desde os anos 30 do século passado, pelo menos. Ser a favor ou contra a garantia de manter o petróleo sob o controle nacional definiu, até aqui, os blocos e as correlações de forças políticas. O que quero destacar, porém, não é o embate em si, mas o problema dele ser nosso embate principal, por assim dizer. Como enfrentar uma questão que, no senso comum, virou uma bandeira do que é bom e o que é mau?
Hoje, sabemos que o petróleo e toda energia fóssil (petróleo + carvão + gás) foram, e ainda são, a energia que move o capitalismo. Claro, o capitalismo se alimenta da mais valia na exploração do trabalho. Para fazer isto, conta com o uso intenso de energia fóssil. Controlar fontes de energia fóssil passou a ser vital para alimentar um modo de produção nele baseado, visando mais acumulação de riquezas do que produção de bem estar. O mundo está sendo moldado pela geopolítica do petróleo, para manter a hegemonia do capitalismo globalizado. Todas as explorações, colonialismos, machismos, racismos foram postos a serviço de um sistema de grande potencial de acumulação de riquezas, que a energia fóssil propiciou. Seu maior resultado foi criar um mundo extremamente desigual e ameaçado em sua integridade. Vivemos numa sociedade petrolífera, produtivista e consumista global, extremamente desigual, sob a hegemonia das grandes corporações econômicas e financeiras. Além disto, e mais fundamental ainda, a energia fóssil, que move o capitalismo globalizado, com suas emissões de CO2, principal causa da mudança climática, e todo impacto de sua fome por recursos naturais, é a maior ameaça à integridade dos sistemas ecológicos e à própria sustentabilidade da vida no planeta Terra. Este é o pano de fundo dos leilões da ANP feitos no Brasil na semana que passou. Será que temos isto como grade de leitura da conjuntura política e econômica nacional?
Aqui cabe ressaltar o quanto a energia é determinante do modo de viver e do bem estar possível. A energia é indispensável para a vida e para as sociedades. Este é o primeiro e fundamental ponto. Portanto, discutir a questão da energia não é buscar formas de não depender dela, mas de qual energia usar, como produzi-la e, até, como estocar tal energia. Produzir energia é extrair e usar a potência energética presente na natureza como um dom. A energia tem sido a infraestrutura indispensável das civilizações que se construíram e sucederam na história da humanidade.
O capitalismo se fez e conquistou o domínio total com base no uso da energia fóssil. A geopolítica mundial tem como substrato o controle de reservas de petróleo. É através do controle das reservas, produção e distribuição de energia fóssil que temos definido o nosso modo de nos organizar e viver, de estilos de consumo, os ideários e projetos de país. Assim, são questões fundamentais do presente e futuro que estão envolvidas na exploração do petróleo. Aqui cabe sublinhar a ameaça que o petróleo significa para a integridade do planeta Terra. Não podemos continuar explorando petróleo e mantendo os mesmos padrões produtivistas e consumistas em que se baseia a sociedade petrolífera. Precisamos desarmar tal bomba e iniciar uma transição para outros modos de produzir, consumir e viver.
Bem, este é o cenário imediato e o que há de ameaçador por trás. Discutimos em um pequeno evento no Ibase – dia 26, terça feira, um dia antes dos leilões da ANP – sobre esta grande ameaça, desde o aqui e o agora. Afinal, exploração de petróleo e gás se faz em territórios concretos, sempre com impacto nas sociedades locais. Existem as “zonas de sacrifício”, incontornáveis. Não há dinheiro, compensação ou sei lá qual medida que pode reparar o estrago nos territórios humanos, territórios de cidadania local, como prefiro dizer. Direitos não se negociam ou compensam, devem ser, acima de tudo, respeitados e garantidos. Aqui poderíamos contemplar os direitos à integridade dos sistemas naturais, questão fundamental para gerações futuras terem os mesmos direitos que a nossa. O debate no Ibase foi um pequeno evento, quase uma semente jogada por aí. Mas é isto que precisamos fazer: pequenas resistências e transformações moleculares. No evento, desconstruímos ou contribuímos para criticar o senso comum do petróleo como redenção da pátria, como possibilidade do sonhado desenvolvimento. Petróleo é destruição, morte, sofrimento, negação de direitos e de democracia, ainda mais se nos falta, como no atual marco, alguma possibilidade de gestão pública de sua exploração. Multiplicando pequenas “plantações” críticas e construtivas, com visão estratégica das mudanças a fazer, começamos a imaginar outro amanhã. Claro, um amanhã contaminado pelas destruições irreparáveis de hoje. Mas resistir, pensando, vale a pena. Outro amanhã sempre é possível.
Rio, 02/10/17