Graciela Rodriguez
Instituto Eqüit
O que vimos nas ruas do Brasil ontem é um novo modo do poder político. O corpo das mulheres enfrentando o medo que querem impor às sociedades, dizendo que não queremos mais ser tuteladas, invisibilizadas, ameaçadas e assassinadas. Uma nova forma de construir democracia nas ruas, apesar das engessadas e envelhecidas instituições da política nas quais as mulheres não ultrapassam 10% de presença nos parlamentos corrompidos pelo poder patriarcal, deslegitimados pelas práticas corruptas e por uma política que só se legitima como expressão da hierarquia de dominação.
Mas por que não temos medo? Porque logramos a incorporação sensível dos corpos quando se sabem acompanhados no espaço comum, o “acorpamento” do qual falam as companheiras latinas quando saem as ruas. Uma prática e uma construção antiga das mulheres, de antes das bruxas, vinda da experiência comunitária, amassada junto com os cantos coletivos das trabalhadoras, mas ainda latente nos modos de fazer das quebradeiras de coco babaçu e outras espalhadas pelo Brasil. E as mulheres podemos fazê-lo porque, recuperando nossa memória arcaica, não precisamos reproduzir o pertencimento a nenhuma institucionalidade da guerra e da violência.
Aqui engendra-se uma nova forma do “fazer político”, desde as redes sociais às ruas, as mulheres nos mostramos como uma força horizontal, como um desejo solidário para com a sociedade, com total despudor na exibição das diversidades, e com alegria contagiante: Uma forma que rompe o medo!
A presença de milhares de mulheres nas ruas das cidades do país, exibindo a rejeição da sociedade ao fascismo, foi a forma de um fazer político transbordante dos canais institucionais, das maneiras duras do disciplinamento que há séculos nos impõem. O fascismo como a expressão mais acabada do individualismo, da negação do outro como diferença, do rebaixamento e invisibilização do diverso, da naturalização da violência contra as mulheres, da domesticação dos corpos femininos, dos negros e negras, da diversidade sexual, dos e das migrantes, e dos empobrecidos por um poder econômico patriarcal cada vez mais concentrador das riquezas produzidas por toda a sociedade.
As elites não podem impor o brutal modelo de exploração, desemprego massivo, precarização da vida, retirada da posse e espoliação dos territórios rurais e urbanos sem usar da violência, da truculência, sem a criminalização dos mais pobres. A política de combate às drogas se tornando o álibi para o genocídio dos jovens negros das periferias urbanas. A militarização das cidades como o modo de viver em medo. O fascismo como resultado desse processo de fragmentar as sociedades pelo ódio e a violência.
Mas o fascismo também é o resultado da sofisticação, cada dia maior, das formas de controle social e dos territórios, e da modulação das subjetividades, a partir das religiões de mercado, do consumo, do senso comum da dupla moral, do manejo das vontades e desejos mais íntimos, da exploração de corações e mentes.
Por isso as mulheres, a partir de um longo processo de libertação que já dura vários séculos, estamos enfrentando o fascismo com formas não violentas de expressão, de valorização das diversidades, de respeito aos corpos e suas sexualidades, de insubmissão aos padrões estéticos, de cuidado com a vida cotidiana, ou seja simplesmente, de enxergar o outro.
Nós, que desde o feminismo temos sido capazes de construir outros territórios domésticos de valorização do trabalho invisível das mulheres, de denunciar e combater – irmanadas – as violências que sofremos no cotidiano, que saímos a construir a igualdade no vasto campo do trabalho e dos estudos, que estamos fazendo a revolução mais triunfante do último século, agora tomamos as ruas para enfrentar o fascismo pela sua raiz de ódio e dominação patriarcal, racista e de classe. E o fazemos a partir de uma prática de politização feminista, das greves internacionais nos últimos 8 de Março, que abrem novos entendimentos sobre o conceito do trabalho, a partir do direito à escolha para nossas sexualidades, da nossa liberdade para ter ou não filhos, de viver a maternidade como um ato político e de composição de afetos e relações, de caminhar para uma divisão sexual do trabalho igualitária, da força do agir coletivo nas ruas que tomamos, e que agora não queremos mais abandonar; do desejo, enfim, de construir um mundo de iguais e amorosamente diversos.
Expressamos o político reinventado, descolonizado, libertado em sua potência de expressão do desejo de igualdade, solidariedade e paz. Frente à pulsão de morte e à espetacularização da violência que exacerba o fascismo, opomos essa potência que surge da necessidade de inventar outras práticas, outros saberes e outros mundos. Criar diálogos, vínculos, argumentações politizando a vida no seu sentido social, cooperativo e amoroso é a forma de fugir das ansiedades, angústias e do sofrimento psíquico a que nos condena o frenesi capitalista.
O movimento das mulheres faz visível a “pedagogia da crueldade”, da qual nos fala Rita Segato, que impõe o fascismo, expondo os corpos em luta como um modo de vida sem medo. E isso é o sensível, que toca as emoções e que tanto incomoda ao poder, porque vai direto ao corpo e à alma do ser.
As nossas práticas, as nossas roupas, as nossas consignas, as nossas cores, as nossas danças e a nossa alegria pintam o ar de forma diferente para desafiar o ódio, e para permitir que nos apropriemos novamente das sensibilidades.
Como diz o sociólogo Franco Berardi, “a felicidade é subversiva quando ela devém coletiva”: ontem, em muitas cidades do Brasil e do mundo, fomos subversivamente felizes.