Hoje é Dia Latino-americano e Caribenho de Combate à Violência Contra as Mulheres, as mulheres estarão mais uma vez nas ruas para protestar contra contra todas as formas de violência que o Estado e a Sociedade cometem contra a vida das mulheres, exigindo a saída imediata do Deputado Eduardo Cunha, do Secretário Pedro Paulo e a não aprovação do PL 5069. Para homenagear as mulheres, publicamos este texto, de Vilma Piedade, ou Vilma de Oiá, Editora de conteúdo da Plataforma PRETA Brasil, Coordenadora Nacional de Articulação Política da RENAFRO (Rede Nacional de Religiões Afro- Brasileiras e Saúde) e Consultora na Temática Racial da CAMTRA- Casa da Mulher Trabalhadora, que resgata a história do poder feminino na tradição Iorubá. O texto abaixo foi apresentado no Congresso LATINIDADES, em Brasília, em 2013.
Por Vilma Piedade
Buscando a oralidade na tradição Africana encontramos variadas práticas de pensamento, que se ancoram nas tradições, mitos – denominados itans – que os povos africanos fundaram e se basearam para construir sua cultura, suas histórias.
Para escrever e pesquisar sobre o Poder Feminino na Tradição Iorubá tentei me distanciar ao máximo (exercício difícil do pensamento colonizador do Ocidente, para refletirmos acerca das tradições africanas e, particularmente, sobre a trajetória mítica da Iabá – Iansã ou Oiá que alicerça essa escrita. Contudo, também visitei e revisitei pensamentos, teorias e conceitos sobre a visão do ser mulher na sociedade ocidental originárias de filósofos como Platão e Rosseau.
Vamos lá!
Quando viemos para o Brasil, há mais de 500 anos, nosso Povo Preto, nós, fomos retirados à força de nossos territórios e escravizados aqui. Falo no masculino porque vou me reportar ao meu lugar- o lugar da Tradição. E, como tal, nos identificamos como Povos Tradicionais de Matriz Africana. Isso porque falo e escrevo esse trabalho na perspectiva do Terreiro, como Mulher de Axé. Mulher Negra, Pensadora, Ativista e de Axé.
Este texto se estrutura a partir da noção de Tradição resultante de um conjunto diverso de experiências culturais africanas e que foi “atravessado pela experiência da colonização, de modo que há também culturas coloniais em solo africano. E não é com essas experiências culturais coloniais /modernas que estabeleceremos nosso diálogo, mas com as experiências que resistem, se modificam, se rearticulam, apesar da colonização.”
Tradicional, portanto, não é apenas o antigo, mas aquilo que se manteve em movimento, conservou-se em mudanças, diante das forças coloniais que construíram a África, tal como, de modo geral, a conhecemos hoje (MUDIMBE, 1988) .
Quando me refiro à Tradição Iorubá faz-se necessário escurecer o texto e citar a História:
Vejamos!
Há uma diversidade de Tradições Africanas no Brasil que só se manifestam e são ritualizadas / reatualizadas nos espaços Terreiro. Porém, tem um princípio que une todas as Tradições- o princípio do acolhimento. Tem um outro princípio que nos une- a palavra. A palavra que realiza. A palavra que vem do Axé, a palavra que tem o poder da realização.
Sobre a História
Com o tráfico negreiro, foram trazidos diversos povos de diversas regiões do continente africano para nosso país. Os historiadores afirmam que a vinda forçada de populações africanas se deu em quatro grandes ciclos: o primeiro, trazendo pessoas da região da Costa da Guiné, durante a segunda metade do século XVII; o segundo, trazendo pessoas da Bacia do Congo, sobretudo dos atuais Congo e Angola, no século XVII; o terceiro, trazendo pessoas da Costa da Mina, durante quase todo o século XVIII; o último, trazendo as pessoas da Baia do Benin, entre 1770 e 1850 (VIANNA FILHO, 2008; VERGER, 2002). As três tradições que constituirão os Povos Tradicionais de Matrizes Africanas, vieram nos três últimos ciclos: Os povos de língua banta, vindos no segundo ciclo, os povos de língua ewé-fon, no segundo ciclo e os povos de língua iorubá, no último ciclo. Entendendo que cada tradição advinda da África pra cá trouxe sua cultura, histórias, língua, dialetos, mitos, valores, religião, precisava fazer o recorte na Tradição Ioruba- do último ciclo.
Nós-as mulheres e as representações sociais
As representações sociais das mulheres na tradição ocidental, desde os primórdios, são de que Nós fomos feitas da costela de Adão o que nos transformou em apêndice, mulheres função – propriedade. Propriedade do machismo que mata as mulheres no cotidiano.
Continuando, segundo os textos bíblicos, fizemos Adão comer aquela infeliz maçã e, com isso, transformamos a humanidade em “pecadora”, já que a humanidade perdeu o estado de graça que tinha no paraíso, e a partir daí, fomos e somos penalizadas até hoje. Quando, há milênios, foi escrito “ mulher, parirás com dor “- Essa máxima da tradição judaico-cristã, talvez persiga as mulheres e jovens negras ao utilizarem os serviços do SUS para o parto normal, pois, segundo dados da OMS – Organização Mundial de Saúde- mulheres e jovens negras recebem menos anestésico local ao parir. Junte-se a isso o racismo e o racismo institucional que transformou a população negra em resistente à dor, já que esse pensamento serviu para justificar a escravidão, e estamos até agora no combate ao racismo no Brasil.
Na Mitologia Grega , Pandora, a primeira mulher criada por Zeus, era possuidora de uma caixa com todos os males do mundo. Já Platão afirma que a mulher era a reencarnação de um homem que cometeu muitos erros no passado e então voltou mulher. No séc XIX Rousseau disse que temos uma condição esquizofrênica: estamos entre a santa e a pecadora, porque, segundo o autor do Contrato Social, a mulher ideal é a que tem o corpo interdito ao prazer- corpo santo. Esse pensamento ainda é moderno , perpassa e vitimiza mulheres, jovens e meninas em várias culturas . Inclusive na nossa, pois diante do cenário político que estamos vivenciando, nosso corpo não nos pertence. Até hoje é grande a luta das mulheres pela legalização do aborto no Brasil. Esse corpo feminino interdito, da burca, da procriação, não pode ser exposto – esse corpo pertence a Deus! O corpo da luta política, o do prazer, do direito ao nosso corpo, é demoníaco, do mal. O corpo feminino tem que estar coberto porque ele é tentador e, no caso das mulheres negras é um corpo objeto sexual, pronto para ser consumido. Afinal, conforme já foi dito – a carne negra é a mais barata do mercado! E por aí vai…
Portanto, as representações sociais da sexualidade feminina que circulam em nossa sociedade estão ancoradas em discursos da tradição judaico-cristã na Tríade Divina – Pai, Filho e Espírito Santo e, nesse poder estruturante, não existe a figura da mulher. O Poder é do masculino!
Mas, e o Poder Feminino na Tradição Iorubá?
Na nossa Tradição, como diz Mãe Beata de Iemanjá- o corpo carrega axé! carrega energia vital, energia que colocamos em movimento através da dança ritual. Nosso corpo é liberto de correntes, da culpa da tradição Judaico Cristã. Não temos a visão dicotômica do bem e do mal. Não temos e nem criamos o demônio, o Diabo- anjo caído – esse conceito não nos pertence e nem nos representa. Logo, não vivemos com a culpa do pecado, já que não há pecado pra nós. Nosso corpo tem que estar saudável para saudarmos os Orixás! Nosso pensamento é circular, eu me reconheço no outro;eu sou porque o outro existe;eu sou porque você me reconhece- isso é UBUNTU- nosso princípio filosófico. Apesar de pertencer à Tradição Ioruba, todas as Tradições se reconhecem, não há supremacia de uma sobre outra. Há mitos, ícones, linguagens corpóreas, rítmicas e musicais que nos identifica .e nos aproxima. Buscando Pai Paulo de Oliveira- Ifatide Ifamoroti, a Tradição está intimamente ligada ai conceito de Wá-che, che ou Axexe, rito fúnebre, origem de passagem, contido no cântico usado nos nossos ritos de morte, significando a própria origem. É quando partimos do Ayê- Terra e vamos para o Orun- espaço transcendental, sagrado. É no Orun que reencontramos nossos , nossas Ancestrais , já que a morte, nos transforma em Ancestrais, É circular.
Oiá Iansã e o Poder Feminino
Vou falar do Poder Feminino me referendando em Minha Mãe- Iansã! Iansã vai lá e cá, transita entre o Orum e o AYê, é o princípio e o fim; ela circula. Minha Mãe é minha origem, minha Ancestralidade.
Na nossa Tradição as mulheres são portadoras de muito axé. O nosso corpo – morada dos Orixás, é um corpo que dança. É um corpo liberto. A dança de Iansã representa bem o que estou tentando dizer – XÔ Xô Xô Ecuru, ou seja, seus movimentos rítmicos espanta os eguns. Ela dança, se mexe, é a própria transformação, o movimento. isso é circular para todo Axé, todo o Terreiro. Através das danças rituais a mulheres incorporam a força cósmica criando novas possibilidades de transformação e mudança. È o lugar do Saber Ancestral. Através da dança o corpo é um território livre, mesmo tendo sido marcado a fogo e ferro pela escravidão e ainda marcado pela violência do racismo!
Sabemos que o Mito é o discurso em que se fundamentam todas as justificativas da ordem e da contraordem do simbólico. E, é através da dança, das festas do Axé, que reatualizamos os mitos.
Na nossa Tradição, sem o Poder Feminino, sem o princípio da criação, nada acontece, nada nasce, tanto, que o Matriarcado é fundante no candomblé no Brasil. Sem a mulher, sem esse princípio feminino da criação, não existe vida, por isso a mulher deve ser reverenciada!
Não vou expor aqui Cultos , nem fundamentos , itans- mitos-lendas que, ampliariam a compreensão do texto. Porém, vou citar, rapidamente, uma Sociedade- Culto das Géledés . As principais características desse culto são as máscaras rituais, que simbolizam o espírito das nossas mães ancestrais. As máscaras são usadas por homens que fazem parte de sociedades dirigidas por mulheres que possuem poderes e segredos.
Mas se a Sociedade é de mulheres porque são os homens que usam as máscaras e participam do culto? É uma reverência feita pelos homens sacerdotes ao Poder Feminino Ancestral!Os homens usam vestes femininas e máscaras com características femininas, dançam para acalmar e não provocar a ira das Mães Ancestrais e, entre outras coisas, para manter a harmonia entre o poder feminino e o poder masculino. Essa cerimônia é realizada , ainda na atualidade, nos Festivais anuais da Nigéria.
Oiá- Iansan…e o Poder Feminino na Tradição Iorubá
É uma das representações do Poder Feminino na Tradição Iorubá. Ela está presente no tempo, no espaço. É o próprio ar em movimento que caracteriza sua essência. É a Deusa- Iabá que, graças a sua agilidade de espalhar axé, transita no mundo dos vivos e dos mortos. Guerreira, divindade dos ventos, das tempestades, dos raios, dos redemoinhos. Do fogo, da pele de búfalo. Eparrei! saudação de Oiá- Iansã.
Cosi Ewe, Cosi Orixá…significado na língua Ioruba- sem Folha, não tem Orixá! Conta a lenda-itan que Xangô- Senhor do Fogo , da Justiça e do Trovão, teria pedido à Iansã que soprasse um vento forte para fazer cair de uma árvore , a cabaça onde Ossain- Orixá das Folhas- guardava toadas as folhas da Terra e levasse a cabaça pra ele. Iansã pensou …mais ou menos assim…porque vou dar todo esse poder a Xangô? e, ao invés de fazer cair a cabaça, soprou forte , as folhas se espalharam e, cada Orixá pode pegar a sua folha. E, a partir daí, cada Orixá passou a ter a sua folha de fundamento ritual. É o uso coletivo.
Falar de avanços e conquistas na luta das mulheres negras pegando a Tradição, a trajetória de Oiá-iansan é o objetivo ao qual me proponho.
Continuando , Iansan teria percorrido muitos reinos. No reino de Ire, na cidade de Ogun- ela aprendeu a usar, manusear a espada; em Oxobô, com Oxaguian, aprendeu a usar o escudo para se defender como nós; com Lógun-Edé- a pesca: com Oxossi, a caça, a pele de búfalo; com Exu- aprendeu a usar o fogo , a magia; Com Obaluaiê , ela recebe a chave do Igbalé- o lugar para onde vão as pessoas quando morrem (corpo), já que o Egun (espírito em outras tradições) vai pro Orun.
Enfim, o que quero focar é que assim como Oiá-Iansã se apropriou dos poderes ditos masculinos,- dos Orixás já que Iabá-é uma denominação usada para Divindades femininas, como- Iemanjá, Oxum, Nanã, Ewá, Obá, Oiá-Iansan, e Eborá-Orixá- masculino, que possamos utilizá-los como estratégias para a nossa luta política na promoção e garantia dos direitos das mulheres negras.
Assim como na dança ritual de Oiá Iansan o axé se espalha, que possamos, a partir dos mitos da nossa tradição, abandonar a visão eurocêntrica do feminismo, aproveitar o que nessa teoria fortalece a nossa luta, contudo, sem perder de vista as estratégias de luta que podemos utilizar no nosso Feminismo Preto.
Que a força de todas as mulheres ,juntas na Marcha ,tenha o poder de transformação. A Marcha das Mulheres Negras a ser realizada em Brasília é uma construção coletiva, circular- uma sobe e puxa a outra! Contra o racismo, o sexismo e pelo bem viver!
A Ancestralidade marca nossa identidade. Portanto, agradeço a todas as mulheres negras que nos antecederam nessa luta, nessa marcha- Mãe Senhora, Mãe Aninha, Mãe Olga do Alaketu, Mãe Menininha do Gantois, Luiza Mahin, Tia Ciata, Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento, Ângela Davis, Cláudia Ferreira , e por aí vai….
Axé para todas e todos!
Eparrei Oiá! Obrigada por ser sua filha!
Motumbá- Bença especial, à Yalorixá Torodi D! Ogun – autoridade sacerdotal, ativista, escritora, mulher negra que dirige o Ilê Asé Ala Koro Wô – RJ- Venda Velha- que me ensinou o pertencimento e ampliou a minha compreensão do meu sagrado , de Oiá- Iansan, da minha Tradição!
Motumbá a Pai Paulo de Oliveira- Ifatide Ifamoroti por me fazer escrever, pesquisar , me orientar nessa trajetória .