Bianca Arruda
Nessa semana assistimos atônitos a destruição do mais importante acervo de História Natural da América Latina, lugar também em que funcionava um dos mais respeitáveis espaços de educação e pesquisa das Américas. Um museu universitário, parte da Universidade Federal do Rio de Janeiro e vinculado ao Ministério de Educação, que nesse ano completou 200 anos.
De seu acervo de mais de 20 milhões de itens, destacavam-se, em exposição: a coleção egípcia, as coleções de Paleontologia que incluíam o Maxakalisaurus topai, dinossauro proveniente de Minas Gerais; o mais antigo fóssil humano já encontrado no país, batizada de “Luzia”, na extinta coleção de Antropologia Biológica. Nas coleções de Etnologia existiam objetos que mostram a riqueza da nossa cultura indígena e afro-brasileira. Na Geologia, o Bedengó, maior meteorito encontrado no Brasil, entre tantos outros objetos que compunham seu rico acervo. Destaque também para o acervo bibliográfico da Biblioteca Francisca Keller do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS), um dos melhores programas de pós-graduação em antropologia do Brasil e do mundo, e para o acervo documental, no qual estava todo o material de pesquisas sobre línguas indígenas das terras baixas da América do Sul.
Todas essas eram coleções preciosas, base dos estudos realizados pelos Departamentos de Antropologia, Botânica, Entomologia, Geologia e Paleontologia, Vertebrados e Invertebrados. Departamentos mantidos por meio do trabalho sério de centenas de pesquisadores, técnicos, alunos e professores que há anos vêm lutando por manter o bom funcionamento da instituição e a qualidade de suas atividades de ensino e pesquisa, a despeito do descaso do Governo que, sobretudo nos últimos anos, vem reduzindo sistematicamente as verbas destinadas a manutenção e investimentos nas universidades federais – informação amplamente divulgada antes do fatídico acontecimento do incêndio.
A diminuição de verbas gerava impactos objetivos na vivência de todos aqueles engajados em manter o bom funcionamento da instituição e também muita preocupação em relação a manutenção do acervo e atividades corriqueiras. Eram preocupações que iam desde o estado de conservação das paredes em função da infestação de cupins ou de rachaduras, até a possibilidade de manter atividades de pesquisa com a drástica diminuição de verbas de custeio. Relato isso como ex-aluna do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, recordando as vezes em que, seja nos corredores ou nas reuniões de Departamento, esses assuntos tornavam-se pauta das conversas. Assim é que para muitos envolvidos com as atividades cotidianas de manutenção da instituição, o incêndio tratou-se de uma tragédia anunciada, o que não diminui em nada o abatimento e o sentimento de revolta diante da perda irreparável, sobretudo porque não existia apatia nem conformidade em relação a situação vivida.
Mesmo nesse cenário de escassez, a instituição mantinha reconhecimento internacional como núcleo de excelência em pesquisa e além disso se firmava nacionalmente como um espaço comprometido com ações voltadas para disseminação desse conhecimento por meio do seu programa educativo e por ações de combate as desigualdades no acesso ao conhecimento e à educação. Desde 2012, o Museu se tornou pioneiro nas ações de ampliação de acesso igualitário ao ensino na pós-graduação por meio da consolidação de uma política de ações afirmativas para o ingresso de alunos indígenas e negros no PPGAS. Política essa que tem resultado em transformações profundas e fundamentais nas relações de produção de pesquisas e no ensino, transformações essas que ainda estão em curso e que tem grande impacto para a produção de conhecimento e para a criação de novas e potentes versões da nossa história e criação de novas formas de compreensão do mundo que habitamos.
O incêndio que destruiu o Museu Nacional, portanto, não pode ser entendido como mero acidente. Ele é resultado de um projeto político que não valoriza, não incentiva e trata com descaso as atividades de pesquisa e ensino no país. Projeto esse que se agrava com a Emenda Constitucional 95, que “congela” durante 20 anos, as despesas primárias do orçamento público afetando diretamente os investimentos nas universidades e demais instituições produtoras de conhecimento no país.
Nessa conjuntura, ainda que reconhecendo os danos irreparáveis, nos cabe reunir forças para afirmar a importância da missão do Museu Nacional, seu compromisso com a produção de conhecimento e disseminação da ciência e acesso à educação, e seguir na luta pela manutenção das universidades públicas e ampliação do direito ao ensino público e de qualidade.