Rio de Janeiro, 12 de janeiro de 2015
Por Cândido Grzybowski
Sociólogo, diretor do Ibase
O atentado de 7 de janeiro contra os cartunistas e a redação do Charlie Hebdo, perto da simbólica Place de la Bastille, no coração de Paris, é como um atentado contra a cidadania. Não foi atingido um alvo do poder econômico, político ou militar da França. O ato foi planejado e executado contra a expressão simbólica, contra ideias e modos de ver, contra o igual direito cidadão, em nossa diversidade, de pensar, de dar significados, de construir e desconstruir sentidos e imagens. Direito exercido com a palavra, falada, gritada, estampada em cartaz, pichada no muro ou escrita. Direito exercido por símbolos, imagens e caricaturas. Direito exercido pela ocupação da rua e da praça, pela passeata ou pelo silêncio, como fez a cidadania francesa agora, nas praças de Paris e das principais cidades do país, com ecos semelhantes em todo mundo. O atentado foi com armas mortíferas – doze da equipe de Charlie Hebdo foram assassinados – contra quem exercia de modo exemplar este direito de cidadania: a prática sistemática da liberdade de expressar ideias divergentes pela caricatura desconcertante. Por isto, era uma pequena parte de nós todos, cidadania planetária, que estava reunida naquela redação na manhã do dia 7 de janeiro e pagou com a morte o direito do livre pensar.
O Ibase, como organização de cidadania ativa, se solidariza com os familiares e amigos das vítimas, com toda a cidadania francesa. Ao mesmo tempo, o Ibase se junta à trincheira de resistência cidadã que se constituiu imediatamente após e se alastrou pelo mundo simplesmente afirmando “Je suis Charlie”. Diante da intolerância e dos fundamentalismos, nada melhor que mostrar que somos muitos, espalhados pelo Planeta Terra, que defendemos o mesmo direito de exercer a liberdade de pensar. Isto simplesmente porque não concebemos o ser e o viver do estado de cidadania e democracia sem igualdade no direito livremente o que pensamos e queremos.
Estamos vivendo um momento conturbado, com crises de múltiplas facetas, com irrupções desiguais e imprevisíveis de um lugar a outro, de um país a outro. Dada a globalização que, de um modo ou outro, domina a todos os povos, e dada a conexão em tempo real, propiciada pelas novas tecnologias de comunicação, não dá para evitar o sentido de interdependência e compartilhamento das mesmas questões, dos mesmos problemas e dores, das mesmas urgências e indignações. Este renovado sentido de humanidade nos deve dar forças para tentar cimentar a enorme diversidade de situações e culturas que vivemos em uma comum identidade de direitos e responsabilidades de cidadania planetária. Claro que temos visões, ideias e valores diversos, só possíveis de convívio num espaço republicano radical. A diversidade social, cultural e religiosa não pode justificar a intolerância de uns contra outros, a xenofobia, o racismo, a negação do direito de crer e praticar a sua religião ou o seu ceticismo e ateísmo.
O atentado contra o que significa o Charlie Hebdo é um grande atentado à democracia. Os que planejaram e executaram o ato não o fizeram para se emancipar social e politicamente. Pelo contrário, o seu ato foi para impedir a controvérsia, a divergência, a ironia com dogmas que, estes sim, dominam e subjugam até mentes. O ato atinge a democracia pois impede que as contradições, reais, mas nem sempre pensadas, sejam de visões de mundo ou de religiões, possam ser ditas, ser evidenciadas, e, no processo, confrontadas de forma democrática no espaço público, no confronto legítimo, sem violência. Ninguém ganha, ninguém perde. Todos se enriquecem e engrandecem pois acabam vendo e entendendo o ponto de vista e as possibilidades de uns e outros. O compromisso da convivência é possível, num pacto democrático contraditório e, por isto mesmo, incerto, mas construtivo, que permite avançar.
Nada mais necessário do que um aprofundamento e um revigoramento da democracia neste começo de 2015. Entre o fundamentalismo da ditadura dos mercados, num extremo, e o fundamentalismo do Estado Islâmico, no outro, com uma crise civilizatória no meio, aprofundando desigualdades sociais e destruindo a base comum natural da vida de todos, precisamos urgentemente encontrar imaginários mobilizadores que nos unam na diversidade. Já praticamos a ironia contra tudo o que parece sólido, pois pode se desmanchar no ar, por uma palavra ou traço. Já divergimos bastante para descobrir que não há um só caminho, mas muitos e todos nos podem levar a outro mundo. Já sabemos desobedecer e agir assim mesmo quando a lei e a norma se confrontam com a legitimidade dos direitos comuns de cidadania. Já aprendemos a resistir, a dizer basta, a construir trincheiras de cidadania, sabendo que, em última análise, a palavra e o lápis vencerão a arrogância intolerante e as armas, por mais poderosas que possam ser.
O momento deve ser de uma investida cidadã em dupla direção, do local ao mundial. De um lado, extrair de nossa ironia, divergência, desobediência e resistência aqueles fundamentos éticos e princípios democráticos comuns que podem no unir e fortalecer. De outro lado, precisamos começar aqui e agora o processo de transição democrática, de onde vivemos e onde efetivamente podemos participar. Nada a esperar de Estados e mercados. A cidadania precisa ocupar o espaço, antes que os fundamentalismos completem a destruição desta civilização em crise. O que parece impossível, pode se tornar possível… desde que não percamos o sonho, a ironia e a ternura.