Cândido Grzybowski
Sociólogo, diretor do Ibase
Pelo que se propõe até aqui, diante dos desafios que a humanidade tem pela frente, a Conferência da ONU já é um fracasso anunciado. A linha estruturante do documento final “O futuro que queremos”, ainda em elaboração, tem como pressuposto a busca de uma nova frente de crescimento econômico e de desenvolvimento, o tal green new deal ou economia verde. Não se trata de uma mudança de rumo e de transformação do desenvolvimento capitalista, industrial, produtivista e consumista que gerou o quadro de ameaças sociais e ambientais em que vivemos. Na sua versão globalizada atual – que, pessoalmente, gosto de chamar de cassino global – tudo é comandado pela ganância especulativa financeira. Trata-se de um sistema que funciona comandado pela acumulação global de capitais de um punhado de grandes corporações econômico-financeiras e bancos. No processo, de modo simplificado, se pode dizer que com ele se produz muito, muito luxo para poucos, muito lixo com destruição ambiental, e muita desigualdade social e exclusão. É o tal do sistema para 1%, como bem nos lembram os Occupy Wall Street e tantos movimentos de indignados, sistema que está levando o Planeta Terra a uma mudança climática catastrófica.
Aqui estamos diante do desafio de por em questão princípios, valores e sonhos sobre o que é ser feliz. Será que a felicidade depende da quantidade de dinheiro e dos bens e serviços que ele nos permite adquirir? Esta é a promessa do modelo de economia que temos e que se quer revitalizar com a economia verde. Ela organiza nosso modo de ver, pensar e sentir, que nos leva ao consumismo internalizado como valor, pregado pela propaganda sistemática que invade nossos lares, nossas ruas, nossas cabeças. O senso comum é consumista, nossos valores são atrelados a sinais de consumo, nosso dia a dia é cheio de sinais do ter e consumir, algo que acaba legitimando o sistema, sem refletirmos a respeito do sentido disso tudo e das desgraças que carrega. A desigualdade social e a exclusão, assim como a destruição ambiental, até podem ser vistas e sentidas, mas é como se não fosse com a gente, com o nosso modo de viver.
Resistências e propostas alternativas existem no interior de nossas sociedades, pelo mundo afora. São ainda embrionárias, mas portadoras de futuro, porque radicalmente opostas aos nossos ideais de ter e ter mais bens, consumir mais, sem nunca achar a felicidade. Precisamos olhar com atenção, mas sem fundamentalismos, para tais alternativas. Os povos indígenas andinos, em cinco séculos de resistência a conquistas, destruição e colonização – feitas em nome do ideal eurocêntrico de progresso, a grande filosofia na base do capitalismo – mantêm viva a chama do bem viver. No Fórum Social Mundial, o ideal do bem viver caiu como semente em terra fértil, despertou e alimentou todo um novo olhar e novas frentes de reflexão na busca de novos paradigmas. Na perspectiva de fundamentos para a biocivilização, o bem viver me parece um grande desafio teórico e prático.
O pilar do bem viver é reconhecer-se como parte de uma grande comunidade de sujeitos humanos relacionados entre si e com tudo mais, num mundo interdependente. A condição do bem viver é saber relacionar-se, é sentir-se parte de tudo e de todos, é usufruir a vida que decorre das relações de troca e dependência com o entorno. Na verdade, na visão indígena andina e na sua cultura se combinam conceitos e práticas próprios de sociedades que interagem com todos os componentes da vida. Aí entram como sujeitos tanto os humanos como todos os elementos da natureza (o ar, a chuva, a água, o Sol, a Lua, as montanhas, os animais, as plantas…), bem como os mortos e os espíritos. As relações entre estes conjuntos de sujeitos são de respeito e troca, tendo como pressuposto incontornável a dependência mútua. As formas de tal relação são diversas, como são diversas a biosfera e demais condições naturais, de um lugar a outro. Os territórios exprimem esta diversidade da natureza, da interdependência da natureza com a biodiversidade e de sua simbiose com as sociedades humanas, diversas elas mesmas. É nos territórios que os laços com a Mãe Terra adquirem plenitude;
Voltar a nos olhar como parte dos territórios, como nosso local de existência, de dependência e trocas, com todas as suas possibilidades e limites, pode ser o caminho para refazer e reconstruir as relações entre nós mesmos e de nós com o entorno natural, no respeito mútuo, de trocas vitais, que reproduzem e regeneram, sem destruir. Assim, como proposta de ideal a ser perseguido, para o bem viver trata-se de fazer um percurso mental e prático de relocalização e redescoberta dos laços que nos unem ao mundo natural e, com base nele, dos laços de convívio social, num planeta natural e humano interdependente, do local ao mundial.
Tal filosofia pode nos inspirar na reconstrução ética e prática a fazer, enquanto humanidade, em direção a uma biocivilização, no contrapé da tal economia verde e da nova frente de negócios destruidores social e ambientalmente que ela anuncia. Mas, não nos iludamos, o caminho da mudança não está dado e são muitos os desafios. O que é ou pode ser o bem viver numa favela, num lixão urbano, num acampamento de refugiados, numa comunidade de posseiros e sem terra ameaçados, sendo um migrante sem eira e nem beira? Como redescobrir o bem viver cercado por canaviais e eucaliptos a perder de vista? Como voltar a sonhar em bem viver nas nossas cidades feitas para carros de uso individual, ou nos edifícios refrigerados e nos condomínios cercados, da mais radical separação entre nós mesmos e o “mundo de lá de fora”? Qual o senso de comunidade, de interdependência e solidariedade que ainda existe para ser resgatado de dentro do que a civilização individualista, consumista e destruidora do bem comum nos transformou?
De todo modo, nada disto está na agenda oficial da Rio+20. Cabe a nós dizer basta! Assim não dá mais! As grandes mudanças na história aconteceram por vontade de gente mobilizada em torno de ideais. O que seria se juntássemos forças cidadãs em torno do bem viver?
 

Comentários 2

  1. thor
    13 de agosto de 2012

    concordo

  2. Ana Lúcia Schuler
    22 de outubro de 2013

    Boa tarde, Cândido
    Adorei ler o teu material, pois os índios andinos fazem parte de um trabalho que estou desenvolvendo. Tentei entrar em contato contigo por mail, mas não houve acesso. Poderia me enviar o teu mail ou me informar alguma bibliografia sobre a cultura indígena andina. Obrigada

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