Cândido Grzybowski
Sociólogo, do Ibase
O reformismo praticado pelo ilegítimo Governo Temer esconde para o grande público o seu verdadeiro sentido. Sob o lema da “Ordem e Progresso” são feitas mudanças na Constituição e nas leis do país que são uma verdadeira terra arrasada em termos de direitos sociais e de retrocesso da democracia e cidadania. Isto é ordem? Sim, é a ordem selvagem do livre mercado, do mais forte, da busca de lucros e acumulação de riquezas sem regulação social do Estado, particularmente nas relações de trabalho. Será progresso? Sim, se progresso for crescimento do PIB mesmo com mais desigualdade social, miséria e fome, mais privatizações em áreas estratégicas e serviços como saúde e educação, mais desmatamento e mais avanço do agronegócio e mineradoras sobre áreas protegidas, reservas indígenas e territórios de comunidades tradicionais. Enfim, “Ordem e Progresso” com autoritarismo, se necessário for.
O desmanche é a verdadeira marca desse governo corrupto, que se mantem e faz avançar a tal agenda das reformas pelo apoio da verdadeira quadrilha de parlamentares, hoje no domínio do Congresso Nacional, que se vende em troca de verbas orçamentárias e cargos públicos. O pacto político, que permitiu derrotar a ditadura militar e gerar a Constituição de 1988, está rompido, com conivência do Poder Judiciário.
Na mídia independente, em sites e nas redes sociais, difundem-se muitas análises de grande pertinência sobre o desmanche de direitos embutido nas reformas do governo, assinadas por intelectuais, ativistas, lideranças de movimentos sociais e de organizações de cidadania ativa. Sua repercussão, porém, não consegue se contrapor ao “bloco hegemônico” da grande mídia, especialmente a televisão, com seu apoio irrestrito às reformas e grande capacidade de influir no debate público, sem possibilidade de contestação, sobre o “certo” e o “errado” para o país. Enquanto isto, o cotidiano da maioria da população é um desafio renovado diariamente para ir levando a vida com desemprego ou com trabalho informal, sob ameaça da fome, precisando enfrentar a fila na porta dos postos de saúde e hospitais sem profissionais e sem medicamentos, com filhos em escolas que funcionam precariamente, sujeito a um sistema de transporte ineficiente, caro e estafante, tendo a violência solta em sua volta. Estamos diante de fraturas e desencontros em vários níveis. Para piorar as coisas, se alastra um descrédito nos políticos, devido à corrupção e à mercantilização da política.
Agora, na Reforma da Previdência, fica ainda mais evidente o engodo oficial que está sendo orquestrado e que não parece contestado. As análises alternativas são demolidoras da argumentação do governo e o que a grande mídia sustenta. Em primeiro lugar, o problema da previdência é um problema de gestão, pela não cobrança de débitos de grandes empresas, pelas isenções, pelo desvio de impostos especiais criados na Constituição de 1988 para financiar o sistema, além das fraudes que acontecem, sempre com cumplicidade de dentro do sistema. O segundo e, talvez, maior problema é a prioridade do governo de usar o orçamento para pagar os juros dos detentores da dívida pública, um punhado de credores rentistas de grande poder oculto. Claro, o terceiro, e também um grande problema, é a desigualdade estrutural que o sistema reproduz, praticando uma injustiça em termos de direitos de cidadania para garantir benefícios com base nos tais direitos adquiridos. Aqui entram o Judiciário inteiro, os políticos e seus assessores, os altos funcionários do executivo.
A razão central do governo para aprovar a Reforma é a adequação do orçamento para atender ao mercado, atender os humores da bolsa e dos investidores. Trata-se de adequar os gastos estatais a um crescimento econômico ditado pelo livre mercado. Nada de ampliar direitos de cidadania e de fortalecer o sentido substantivo da democracia, com mais igualdade e justiça, mais participação e bem estar, com sustentabilidade socioambiental. Assim foi com a PEC da “maldade”, aquela que congelou os recursos sociais do orçamento federal por 20 anos. A mesma razão motivou a Reforma das Leis do Trabalho, uma imposição em termos de flexibilização de direitos conquistados com muita luta social nos últimos 80 anos. Vai na mesma linha a flexibilização ambiental e aquele conjunto de MPs pró mercado na questão de terras rurais e urbanas, outro atentado a direitos que precisavam de avanços e não de retrocessos. Enfim, não é uma Reforma da Previdência com perspectiva democrática, mas um engodo a mais no currículo desse governo sem voto.
Chamo a atenção de tudo isto para apontar a questão estratégica da disputa de corações e mentes, dos imaginários coletivos. No caso das reformas, o contrataste entre realidade vivida pela maioria e as reformas é como se falássemos de dois países diferentes. Mas é um só, nosso país e nosso povo que estão sendo agredidos em benefício das minorias de sempre, intolerantes, machistas e racistas. Como se forja um senso comum no seio da população que dá um mínimo de viabilidade para as reformas passarem, com todas as agregações a direitos fundamentais, com as segregações e as injustiças sociais que perpetuam e ampliam? Por que isto acaba passando sem grandes reações? Ou, quando elas acontecem, as reações são fragmentadas e não captam a adesão necessária para virar uma onda de cidadania capaz de fazer tremer os detentores de poder?
Termino afirmando que não faltam análises e argumentos para fazer face ao discurso do governo. Ainda mais quando a mentira é o seu discurso, quando afirma enfaticamente que a Reforma da Previdência visa combater os privilégios e as desigualdades no interior do sistema. Se assim fosse, o foco da reforma seria redistribuir internamente melhor os recursos e não limitar os gastos, tornando o acesso à aposentadoria de ¾ da população mais difícil, com ampliação de idade e tempo de contribuição. Que discurso é este? É engodo, é mentira, é trapaça de um governo que conquistou o Poder Executivo por golpe! O que nos falta é capacidade de disputar o discurso. Temos argumentos, mas nos falta capacidade de ir para a disputa de hegemonia na sociedade, para criar um imaginário renovado e que fale a corações e mentes do povo sofredor de nosso país. Precisamos ousar e criar capacidade entre nós para criar uma visão que não fique presa no passado, mas que responda aos desafios do presente de cara ao futuro, um país mais democrático, mais justo, mais igual em sua riqueza humana e cultura de diversidades, mais de bem viver e sustentável.
Rio, 10/12/17