Cândido Grzybowski
Sociólogo, presidente do Conselho de Governança do Ibase
É devastador para a democracia brasileira e os direitos de cidadania o processo comandado pelo presidente Jair Bolsonaro e seus asseclas, combinando autoritarismo como opção e prática de poder com visão e mentalidade coloniais a serviço de uma agenda capitalista neoliberal radical. Nada a esperar de onde nada poderá vir. Resistir com todas as forças é condição necessária e se impõe a quem crê minimamente em democracia. Porém, a resistência é estrategicamente insuficiente diante do desafio que temos. Não basta recuperar as condições políticas que tivemos no período pós-ditadura militar até o golpe de 2016, porque estrategicamente aceitamos e apostamos nas possibilidades de agenda democrática conciliatória. Avançamos, sem dúvida, em políticas sociais mais abrangentes e compensatórias, mas deixamos de fazer transformações substantivas nas estruturas e processos econômicos e sociais excludentes e destruidores dos bens comuns e da integridade dos sistemas ecológicos dos territórios em que vivemos. Como a maioria dos chamados governos progressistas da região, surfamos no boom dos preços das commodities e nos tornamos mais dependentes do extrativismo primário exportador, da contemporânea situação colonial em contexto de globalização capitalista. Em grande parte, chegamos onde estamos por falta de radicalização e ousadia dos governos pós-ditatoriais que constituímos na vigência plena da Constituição de 1988. Não dá para analisar o funesto governo Bolsonaro fora das contradições que nós mesmos alimentamos. Refiro-me aqui à esquerda institucional, que em nome da governabilidade aceitou alianças e condicionalidades comprometedoras, paralisantes até. Como afirmei ainda em 2004, fomos encurralados pelo nosso próprio voto.
Sei que fazemos a história, mas não escolhemos as condições. Contudo, as condições sempre são oportunidades contraditórias, prenhas de possibilidades, e não imposições absolutas. Por piores que sejam as relações de força nas conjunturas, são muitas as escolhas estratégicas possíveis nas quais se pode investir criatividade e vontade política, disputando hegemonia. Hegemonia – a essência da luta política em contexto democrático – se constrói no seio da sociedade civil, nos territórios de vida e luta da cidadania em sua grande diversidade, seus movimentos sociais, suas organizações, baseando-se na cultura, na comunicação e nas ações que alimentam a vida cotidiana.
Com outras palavras, o que aqui afirmo sobre a centralidade da disputa de hegemonia no seio da sociedade civil foi escrito por quem foi condenado à masmorra do fascista Mussolini. O brilhante intelectual italiano de esquerda fez na prisão sua síntese da práxis transformadora do capitalismo que guiou a sua vida e nos inspira teoricamente sobre o fazer democracia transformadora. Hoje, em nosso Brasil, tal intelectual é detestado pela atual bando do capitão tresloucado, vendo nele a síntese do “marxismo cultural” que querem extirpar.
Será que isto poderá acontecer e teremos que recomeçar, nós também, das masmorras de um possível fascismo? Mesmo considerando tal hipótese, precisamos olhar para outras possibilidades também presentes na conjuntura atual. Para isto, precisamos olhar mais para o que se passa no território da cidadania do que para a tal “grande política” que está enredada, tonta, esfacelada, mesmo na esquerda. Tal situação serve para Bolsonaro, o aparato militar que o apoia e, sobretudo, para que prosperem propostas radicais de neoliberalismo do ministro Paulo Guedes e judicialização e legitimação da violência repressiva e seletiva do ministro Sergio Moro.
Afinal, o maior legado do período democrático foi o enorme tecido social cidadão que conseguimos construir e menos o modelo de governo e as políticas públicas que tivemos. Mas olhar mais para a sociedade e menos para o Estado não nos exime de reconhecer que enfrentamos e continuamos a enfrentar uma recomposição de forças reacionárias presentes na sociedade civil, em extensão que não nos damos conta antes de virem à tona nos desdobramentos e falta de respostas do governo Dilma às demandas de movimentos de cidadania que explodiram em 2013. Mas o aprendizado político, os modos de fazer e disputar valores e ideias no respeito à diversidade, a busca de radicalização de direitos e a emergência de visões e propostas de democracia com perspectiva ecossocial continuam a germinar e estão muito vivos nos mais diversos territórios de cidadania. É daí que algo poderá ocorrer com força para reverter o quadro de adversidades atuais.
A grande tarefa política democrática é continuar na construção de vontades coletivas cidadãs, que se mobilizam e se organizam em torno de sonhos e propostas, podendo virar forças irresistíveis quando atuam em blocos articulados. Temos sim que voltar a fazer educação popular e acreditar na cultura e comunicação, no método dialógico de troca de saberes para gerar novos saberes coletivos, condição necessária para emancipação plena. Sabemos que nos meios populares urbanos e rurais, condenados a serem territórios periféricos, prosperaram fundamentalismos e intolerâncias, bem como valores mais individualistas de mérito do que aqueles da igualdade de direitos de cidadania com liberdade plena. Isso não poderá ser um empecilho político a justificar a inação. Pelo contrário, tal quadro nos deve servir de motivação para redobrar energias criativas e voltar a construir consciência de direito de cidadania e de agir no lugar de aceitação passiva de destinos, em nome de Deus ou de favores dos mais poderosos.
A cidadania é o poder histórico instituinte e constituinte de fato de qualquer democracia com o mínimo de sentido bem e espaço público/político comum. Para ter democracia substantiva, a institucionalidade do poder político, seja o executivo, o parlamento ou o judiciário, precisa ser derivada e delegada pela cidadania, pelo voto e pela ação no espaço público. Só a cidadania pode desempatar as situações difíceis, como, aliás, estamos vendo nas grandes mobilizações em curso em vários países da América Latina.
Mas quais agendas priorizar? Lá onde se vive a dor, o sofrimento, a violência e a morte ou lá onde estão presentes a insatisfação, o sonho negado, o futuro roubado, a falta de liberdade de pensar, ir e vir, ou, ainda, lá onde direitos iguais na diversidade do que somos estão sendo desconstruídos e a cidadania está sendo desprezada e até negada, são terrenos e espaços que precisamos transformar urgentemente em agenda coletiva de cidadania. A prioridade da agenda deve ser dada pela própria resistência ou ação cidadã emergente local. Tais agendas clamam direito de existir e solidariedade de toda a cidadania. Nunca poderemos ignorar tal priorização na ação política: as agendas são sempre as que têm raízes locais, mobilizam a cidadania territorial e são os alicerces em torno aos quais grandes mobilizações de cidadania podem se tecer e formar verdadeiros “blocos históricos” construtores de democracias transformadoras irresistíveis. O diálogo estratégico que precisamos desenvolver como cidadania militante na construção de hegemonia de pensamento democrático diante do que está acontecendo só tem condições de prosperar se respeitadas tais condições na definição de agendas do nosso que fazer democrático.
Concluo por aqui esta minha crônica, indiretamente um balanço crítico de nossa situação como cidadania brasileira no contexto do primeiro ano de governo Bolsonaro e suas ameaças. Admito que se trata de um olhar de uma perspectiva particular, pois estou ligado ao Ibase, à sua história, construída a partir da conturbada situação da cidade do Rio de Janeiro, mas com relações e alianças que irradiam para o Brasil, a Região e o mundo. Fui me fazendo militante e pensador por democracia com perspectiva ecossocial e puxada por cidadanias planetárias a partir desta pequena base institucional. O Ibase não é e nunca foi um pequeno espaço acadêmico, mas se tornou organização de cidadania ativa, como defino, a partir de pesquisa-ação e aporte de conhecimento acadêmico de qualidade para dar a sua contribuição qualificada na aposta de fazer democracias como valor e modo de transformação social. Acertamos e erramos como todo mundo, mas cremos profundamente no poder instituinte constituinte de cidadanias para que democracias tenham sentido.
Proponho-me, nas próximas crônicas, a apontar e qualificar algumas das agendas emergentes estratégicas no Brasil atual à luz do que afirmei acima, mas só como contribuição, sabendo que isto só vale se somar para uma tarefa necessariamente coletiva, diversa e ampla, além de mobilizadora e legitimada na luta nos territórios.