Nathalie Beghin, conselheira do Ibase e coordenadora da Assessoria Política do Inesc
Em 2022, o Brasil, uma das maiores potências agrícolas do mundo, atingiu níveis vergonhosos de insegurança alimentar grave: 33 milhões de pessoas passando fome, de acordo com os dados recentemente publicados pela Rede Penssan. Uma das principais causas da volta desse flagelo social – em 2014 o país havia saído do Mapa da Fome das Nações Unidas – foi o desmonte de políticas públicas de promoção do direito humano à alimentação adequada que haviam sido progressivamente estruturadas no país desde os anos de 1990, com maior ênfase a partir de 2003.
Os impactos do desmonte das políticas de segurança alimentar e nutricional são agravados pelos efeitos da forma de produzir e consumir alimentos no Brasil que apresentam graves consequências na saúde das pessoas, no meio ambiente e nas mudanças climáticas. O agronegócio é responsável por boa parte da água extraída da natureza, causa enorme perda da biodiversidade, contamina os recursos naturais, gera emissões de gases de efeito estufa, adoece a população por meio de agrotóxicos e de alimentos ultraprocessados e expulsa camponeses, povos indígenas e povos e comunidades tradicionais de suas terras e territórios engrossando as periferias empobrecidas das grandes cidades.
O fato é que o Brasil atingiu uma relação insustentável entre a produção, distribuição e o consumo de alimentos.
A boa notícia é que sabemos como fazer para enfrentar esta questão. A fome é um problema multicausal decorrente da insuficiência de renda; da dificuldade de acessar alimentos de qualidade e em quantidades suficientes; e, de processos discriminatórios, como o racismo e o patriarcado, que penalizam mulheres, pessoas negras, povos indígenas, comunidades tradicionais e quilombolas, entre outras causas.
Assim, o enfrentamento da insegurança alimentar e nutricional requer uma abordagem sistêmica e multisetorial. Para possibilitar a aquisição de alimentos é preciso aumentar o salário-mínimo em termos reais, implementar políticas públicas de geração de emprego e renda e ampliar a cobertura e os valores de programas de transferência de renda, como o Bolsa Família e o Benefício de
Prestação Continuada (BPC). A urgência de reparar as desigualdades de gênero e raça exige a implementação de medidas afirmativas como, por exemplo, cotas para negros e mulheres no mercado de trabalho e valores de transferências monetárias maiores para mulheres e pessoa pretas e pardas.
A maior disponibilidade de alimentos de qualidade passa por assegurar o acesso à terra e territórios aos que produzem com respeito à natureza e aos distintos hábitos alimentares da nossa população; passa, também, pelo fortalecimento da agricultura familiar e da agricultura urbana na perspectiva da agroecologia; pelo acesso sustentável à água para produção e consumo no semiárido; pelo aumento dos recursos públicos alocados à programas de alimentação e nutrição, como a alimentação escolar; pela implementação de uma política pública de abastecimento que aproxime produtores de consumidores de alimentos; e, pela implantação de equipamentos urbanos de alimentação e nutrição como restaurantes populares e cozinhas comunitárias. Aqui também, a necessidade de corrigir os efeitos do racismo e do sexismo requer políticas afirmativas como modalidades diferenciadas de acesso à crédito rural para agricultoras mulheres e agricultores negros e quilombolas.
É preciso, ainda, coibir práticas empresariais extremamente danosas à saúde da população, como é o caso dos agrotóxicos e de produtos ultraprocessados. Esses últimos parecem comida, mas são imitação de comida. São fabricados a partir de diversas etapas de processamento e combinam ingredientes como proteína de soja e de leite, extrato de carnes, gordura vegetal hidrogenada, xarope de frutose, espessantes, emulsificantes, corantes, aromatizantes, realçadores de sabor e vários outros tipos de aditivos. São exemplos disso: pratos congelados prontos, biscoitos recheados, salgadinhos de pacote, sucos açucarados e refrigerantes, entre outros. Esses produtos contribuem para aumentar diversos tipos de doença como obesidade, hipertensão, diabetes e alguns tipos de câncer. Os poderes públicos devem não somente deixar de subsidiar essas empresas como sobretaxá-las pelas graves consequências que trazem à saúde das pessoas.
A centralidade da abordagem intersetorial para fazer face à um problema complexo, como no caso da fome no Brasil, não é algo novo. Contudo, para funcionar deve ser alçada a prioridade nacional e ancorada na celebração de um amplo pacto federativo que envolva a União, estados e municípios. Para tal, faz-se necessário retomar o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan) sob a liderança do governo federal. É primordial, ainda, a efetiva participação de organizações e movimentos sociais que possam expressar as demandas e necessidades das pessoas mais afetadas pela alimentação inadequada. Daí a urgência de retomar o Conselho Nacional de
Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) e os ciclos de conferências nacionais.
Vê-se que não há segredos, é só começar já!
Nathalie Beghin é conselheira do Ibase, coordenadora da Assessoria Política do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), economista pela Université Libre de Bruxelles, com mestrado e doutorado em Política Social pela Universidade de Brasília (UnB)
(*) Texto originalmente publicado no Jornal da Ciência, em 06 de outubro de 2002.