Rio de Janeiro, 7 de outubro de 2014
Um encontro hoje a tarde, no IBASE, reuniu representantes da sociedade civil no intuito de criar estratégias para a participação no dia 16 de dezembro, em Brasília, de uma reunião com representantes do Banco Mundial. Há dois anos, o Banco vem elaborando uma mudança na política de salvaguardas sociais e ambientais e, neste momento, está na fase de apresentação para governos, empresas e sociedade civil. Diante disso, o Bank Information Center (BIC), convocou diversas organizações sociais no mundo para fazer uma avaliação da nova proposta do Banco.
Esta avaliação está expressa na “Declaração da sociedade civil sobre as salvaguardas do Banco Mundial”, que teve adesão, até o momento, de 306 organizações, entre elas o Ibase. Em linhas gerais, segundo Cristian Donaldson, do BIC, que esteve na reunião, o documento repudia as novas normas do Banco, pois considera que elas estão aquém das práticas necessárias para preservar o meio ambiente e garantir os direitos de comunidades afetadas com empreendimento financiados pelo Banco.
Todo o processo de elaboração das novas normas, segundo Cristian, foi marcado pela exclusão e falta de transparência e representa um risco real para comunidades em todo mundo, que possam via a ser impactadas por empreendimento financiados por instituições financeiras:
– O Banco Mundial dita políticas que bancos em todo o mundo copiam. Por isso é tão importante esta articulação da sociedade civil – afirmou Cristian.
A íntegra da carta está disponível abaixo:
Declaração da sociedade civil sobre as salvaguardas do Banco Mundial.
Nós, as organizações abaixo-assinadas, nos opomos fortemente às salvaguardas do Banco Mundial, uma vez que estas estão muito aquém das normas necessárias para preservar o meio ambiente e respeitar os direitos das comunidades afetadas, dos trabalhadores e dos povos indígenas. O projeto derroga normas internacionais bem estabelecidas e efetivamente irá desmantelar 30 anos de evolução política, criando um perigoso precedente entre os atores nacionais, regionais e globais. O projeto representa uma diluição massiva da atual política do Banco que enfraquece o impulso para o progresso em harmonia com as normas sociais e ambientais e seu alinhamento com os direitos humanos universais.
Ao eliminar as proteções fundamentais em um momento em que anunciou sua intenção de expandir os empréstimos para infra-estrutura de maior risco, grandes barragens e sistemas de mega-projetos, o Banco deixa de reconhecer que fortes salvaguardas são essenciais para assegurar que os benefícios do projeto sejam compartilhados de forma justa e que os custos não sejam arcados pelos pobres e marginalizados. Enfraquecer as políticas de salvaguarda existentes fará com que as metas do Banco de erradicação da extrema pobreza e promoção da prosperidade compartilhada sejam impossíveis de serem alcançadas.
Nós rejeitamos fundamentalmente a maneira pela qual a revisão e atualização das políticas de salvaguarda foram conduzidas até esta data, marcada pela exclusão e falta de transparência. Crucialmente, o processo de revisão falhou em incorporar as compreensíveis contribuições das organizações da sociedade civil, peritos independentes e acadêmicos, indígenas, sindicatos e comunidades afetadas pelo projeto.
Esperava-se que o exercício “Revisão e Atualização” tivesse se baseado nas políticas existentes do Banco Mundial, que constituem o contrato social e ambiental do Banco Mundial com o mundo em que vivemos. Em acordo com tal contrato, esperava-se que “Revisão e Atualização” incorporasse mais e melhores disposições, quando necessário, corrigisse ou eliminasse elementos desatualizados ou desnecessários, substituindo-os de forma transparente, com formulações alternativas sujeitas a posterior discussão pública. Em vez disso, os textos políticos existentes foram descartados e substituídos por textos completamente diferentes com uma vaga semelhança com as políticas existentes. Nenhuma oportunidade de uma discussão franca foi oferecida durante a primeira fase sobre as mudanças fundamentais que foram incorporadas ao projeto.
Um processo significativo de consulta a múltiplas partes interessadas sobre como operacionalizar e efetivamente implementar as normas internacionais é uma necessidade urgente. Este processo deve levar o tempo que for necessário para solicitar e construir modelos bem sucedidos de salvaguardas que se baseiem em décadas de pesquisa empírica sobre como garantir que o desenvolvimento não faça mal. Deve basear-se no entendimento de que os direitos humanos e a sustentabilidade são componentes fundamentais do desenvolvimento, que são essenciais para atingir as metas do Banco de eliminação da extrema pobreza e aumento da prosperidade compartilhada.
Um conjunto revisto de políticas de salvaguarda deve, no mínimo, tratar das falhas deste projeto que constam em anexo a presente declaração.
O projeto Quadro Ambiental e Social :
Mina os direitos dos Povos Indígenas. Permitir aos mutuários que optem por não implementar a norma Povos Indígenas proposta prejudicaria diretamente as sucessivas e árduas batalhas empreendidas pelos povos indígenas em nível nacional, regional e internacional por ter seus direitos reconhecidos e respeitados e assim, contradiz os seus direitos à auto-determinação e à propriedade coletiva das terras, territórios e recursos. Isso constituiria uma diluição massiva das atuais proteções de salvaguarda do Banco Mundial e minaria a credibilidade da mais proeminente instituição financeira de desenvolvimento do mundo.
Falha na proteção dos direitos dos trabalhadores. A norma de trabalho proposta não teria quase impacto algum na proteção dos direitos dos trabalhadores, pois, ao excluir terceirizados e funcionários públicos, se aplicaria a apenas uma pequena fração das pessoas que trabalham nos projetos financiados pelo Banco. Além disso – diferente de outras instituições de desenvolvimento – deixa de fazer referência ou estar de acordo com as convenções da OIT e de Normas Trabalhistas Fundamentais que devem ser a pedra angular de uma política de trabalho convincente. Por desnecessariamente limitar as pessoas às quais a norma se aplica, o Banco Mundial irá perpetuar os casos de condições inseguras de trabalho, trabalho infantil, salários atrasados e negar a livre associação.
Falha na garantia de proteções críticas aos direitos humanos. A proposta de política de salvaguarda falha em articular como irá operacionalizar os compromissos assumidos com os direitos humanos, que devem sustentar um sistema eficaz de proteção. A proteção aos direitos humanos é necessária para atingir os objetivos de desenvolvimento. A política de salvaguarda deve identificar explicitamente como o Banco irá identificar adequadamente os riscos aos direitos humanos de atividades as quais se propõe a apoiar através de um robusto processo de devida diligência sobre direitos humanos. Isto é crucial se o Banco quer ser bem sucedido no alcance de suas metas estabelecidas de eliminação da pobreza extrema e aumento da prosperidade compartilhada.
Não enfrenta significativamente a mudança climática. Apesar da proeminência do Banco em advertir sobre os perigos que um mundo em aquecimento representa para o desenvolvimento, o projeto inclui apenas uma menção esporádica às mudanças climáticas. Não garante que os projetos estejam alinhados aos planos climáticos nacionais, nem apresenta requisitos claros para avaliar e gerir os impactos de mudanças climáticas na viabilidade dos projetos ou a resiliência dos ecossistemas e comunidades locais nas áreas do projeto. Ao mesmo tempo, o projeto de salvaguardas não exige avaliações de emissões de gases de efeito estufa de todos os projetos de alta emissão ou que tomem medidas para reduzir as emissões.
Pisoteia os direitos e ameaça o bem-estar das comunidades sujeitas a deslocamentos forçados. A proposta elimina o objetivo fundamental de desenvolvimento da política de reassentamento e as principais medidas essenciais para prevenir a pobreza e proteger os direitos das pessoas que saíram de suas casas, terras, atividades produtivas e empregos para dar lugar a projetos do Banco. A proposta permite o financiamento de projetos que implicam no deslocamento físico e econômico das comunidades sem, previamente, garantir um plano de reconstrução e orçamento disponível para assegurar uma compensação adequada, com reassentamento físico, recuperação econômica e melhorias. Esta seria uma regressão inconcebível na política do Banco, que resultará no empobrecimento em grande escala de pessoas afetadas e aumentará de forma exacerbada a desigualdade em flagrante contradição com o mandato e metas do Banco. O projeto também falha em garantir uma contabilidade transparente de forma que as pessoas não deslocadas não acabem em sua conclusão pior do que estariam sem o projeto do Banco.
Falta proteção adequada para evitar privações na infância. Apesar de um novo requisito importante para avaliar os impactos sobre as crianças, entre outros grupos vulneráveis, o projeto carece de requisitos críticos para enfrentar os riscos exclusivos para as crianças. Como tal, os projetos do Banco poderiam manter um potencial para empregar trabalho infantil, reassentar crianças longe de oportunidades educacionais e resultar na exploração ou tráfico de crianças, entre outros riscos. Tais impactos negativos podem resultar, a longo prazo, em privações irreversíveis que causam danos ao longo da vida, impedindo as crianças de alcançarem seu pleno potencial e perpetuando o ciclo da pobreza.
Elimina as proteções para as florestas e os povos dependentes da floresta. A recém-rebatizada norma da biodiversidade estabelece um foco único na biodiversidade das espécies em detrimento da integridade ecológica e das comunidades locais que dependem dos recursos naturais para a sua subsistência e sobrevivência cultural. Longe de salvaguardar florestas e outros habitats naturais, a norma de biodiversidade permite projetos em áreas anteriormente definidas como zonas interditas e oferece brechas para abate de árvores, enquanto a norma dá grande importância a biodiversidade , não deixa áreas naturais “fora da mesa” para possíveis intervenções destrutivas. O projeto deve reforçar as proteções aos recursos naturais dos quais a maioria das pessoas que vive em extrema pobreza depende.
Deixa de fora as pessoas portadoras de deficiência como grupo distinto, muitas vezes afetado de forma diferente pelos projetos. Enquanto o projeto não inclui as pessoas portadoras de deficiência, pela primeira vez, ele não garante que os impactos únicos e diferenciados de projetos do Banco Mundial sobre as pessoas portadoras de deficiência sejam avaliados. Portanto, não proporciona oportunidade para que as pessoas portadoras deficiência possam compartilhar proporcionalmente dos benefícios do projeto e deixa em aberto a possibilidade de que pessoas portadoras de deficiência possam ser prejudicados por projetos do Banco Mundial. Em última análise, as pessoas portadoras de deficiência têm necessidades específicas que devem ser abordadas ao longo do projeto.
Falta proteções a gênero e SOGIE. Ao listar mulheres, meninas, orientação sexual e identidade de gênero e expressão (SOGIE) dentro de uma sequência de “grupos vulneráveis”, o projeto não consegue compreender plenamente os impactos únicos em cada um desses grupos. O próximo projeto deve abordar sistematicamente questões de gênero e SOGIE através das normas e adicionar uma norma autônoma obrigatória sobre gênero e SOGIE, que está há muito atrasa. Isto é necessário para prevenir explicitamente e abordar de forma proativa os impactos negativos da exclusão de gênero e SOGIE no planejamento e benefícios do projeto. Será impossível acabar com a pobreza e promover a prosperidade compartilhada sem abordar explicitamente as questões de gênero e SOGIE.
Falha em proteger e promover direitos à terra. Apesar da crescente crise de grilhagem deslocar inúmeras comunidades indígenas, pequenos agricultores, pescadores e pastores em todo o Sul Global, o projeto não consegue incorporar qualquer proteção séria para evitar que fundos do Banco apóiem a grilhagem de terras. Enquanto o Banco Mundial promete que as novas salvaguardas seriam informadas pelo Comitê Mundial de Alimentação, pelas “Diretrizes Voluntárias sobre posse da Terra, Florestas e Pescas”, o projeto falha em fortalecer a proteção dos direitos territoriais dos grupos pobres e vulneráveis. Em vez disso, os prejudica de várias maneiras, tais como, excluindo a aplicação da norma de terras e reassentamento de projetos relativos à titulação da terra e planejamento de uso da terra.
Exclui quase metade do portifólio do Banco. A aplicação restrita das salvaguardas propostas para projetos de investimento tradicionais excluiria a participação crescente dos empréstimos do Banco canalizados através de outros instrumentos de empréstimo, que respondem por quase metade dos empréstimos do Banco, aumentando a natureza fraturada das salvaguardas no Banco Mundial. Isto levará a um futuro enfraquecimento de um sistema de salvaguardas que já está subfinanciado e com falta de independência, supervisão eficaz e apoio aos mutuários durante a implementação e monitoramento genuíno dos impactos sobre o solo.
Abdica da responsabilidade do Banco e está cheio de brechas. Embora existam novos elementos positivos no quadro, incluindo o reconhecimento do consentimento livre, prévio e informado dos povos indígenas e um escopo ampliado para avaliações sociais, estes são prejudicados por: a clara tentativa de institucionalizar maiores discrições, brechas – que eliminam as proteções processuais – e uma maior dependência de sistemas de mutuários sem clara identificação de quando essa opção é apropriada ou de como os padrões mínimos estariam assegurados. Ao mesmo tempo, o projeto terceiriza o monitoramento e a implementação de salvaguardas para os mutuários, o que representa uma injusta abdicação de responsabilidade por parte do Banco.
Corre o risco de desencadear uma corrida para o fundo. Em última análise, as propostas da política não só não protegem os direitos das comunidades impactadas por projetos do Banco e os ecossistemas que sustentam o desenvolvimento sustentável, mas também baixam o nível de exigências para as instituições financeiras de desenvolvimento que se baseiam no Banco Mundial para definir suas normas. O Banco Mundial ficou muito aquém de sua meta de estabelecer um novo padrão mundial no que tange a proteger os direitos dos pobres e do meio ambiente. Ao invés disso, corre o risco de desencadear uma corrida para o fundo, susceptível de gerar consequências negativas para os padrões sociais e ambientais a nível global. O Banco deveria, antes de tudo, estar focado em garantir, no mínimo, uma harmonia crescente com as mais fortes salvaguardas existentes e superar essas proteções, a fim de entregar resultados de desenvolvimento sustentável para os mais pobres, com foco na promoção de bens públicos globais, em vez de competir por participação no mercado. O Banco deveria desenvolver o seu papel de liderança no apoio a princípios de sustentabilidade, às normas de direitos humanos, às leis internacionais e suas obrigações correspondentes.