Cândido Grzybowski
Sociólogo, do Ibase
Minhas reflexões sobre paradigmas alternativos ao exacerbado capitalismo, com suas regras de livre mercado para vencer e acumular individualmente riquezas – verdadeira lei da selva de tudo para os tais 1% considerados os mais competentes, fortes, agressivos, corruptores até –, me têm levado a pensar mais e mais nos bens comuns nas nossas vidas. Nisto tem se destacado a intrigante questão das cidades como bens comuns. Afinal, falamos em nossa cidade naturalmente, em todas as ocasiões, todo tempo. O incrível é que afirmamos que a cidade é nossa mesmo em pleno capitalismo selvagem como este que nos está sendo restituído pela dupla Temer-Meireles. Será apenas uma contradição a mais no conjunto de contradições que constituem nosso viver no mundo de hoje?
Teórica e praticamente, os bens comuns, mesmo subordinados, são uma realidade. Convivem com relações dominantes que, na essência, tendem a negá-los, mas não conseguem. Por exemplo, neste momento vivemos um processo que radicaliza a privatização de comuns em nome do desenvolvimento, como a água, as sementes, os recursos naturais, o conhecimento e por aí vai. É uma onda forte. Porém, como todas as ondas, ela vai rebentar um dia na praia. Enquanto isto, resistências surgem aqui e lá, indicando que alternativas nascem no seio das próprias contradições do hoje. A defesa dos comuns, a luta por mantê-los e ampliá-los, enfim, os comuns como proposta e vivência constituem uma trincheira de resistência diante do privatizar e mercantilizar tudo, segundo as regras de mercado.
Voltando ao título da minha crônica, o que significa exatamente a cidade ser nossa? Onde está a essência de ser um comum para ser chamada de nossa? Quando a gente começa a pensar se depara com muita coisa privada na cidade: casas privadas, prédios de apartamentos privados, prédios de escritórios privados, casas comerciais e de serviços, fábricas, depósitos, oficinas etc, tudo privado. Mas indo além, a gente começa ver praças e parques comuns, as praias, a baía, a Floresta da Tijuca, o Pão de Açúcar, o Parque do Flamengo, a Lapa, o Morro da Penha, o Outeiro da Glória, os palácios e prédios da administração pública, muitas escolas e hospitais públicos, como também as universidades mais importantes, o Teatro Municipal, a Biblioteca Nacional, o Sambódromo, os museus e muito mais. Tudo isto nos faz ver algo praticamente único e comum, que até dá identidade à nossa cidade. Temos os comuns simbólicos como o samba e as escolas de samba, o nosso tipo de funk, o jeitinho carioca de ser e viver. Sem dúvida, temos segregações e exclusões sociais, não são privadas ou estatais, mas também não são comuns, apesar de serem nossas mazelas. No entanto, parte de nossa cidade comum.
O que faz uma cidade ser um grande comum, ser nossa cidade? Os espaços abertos tornados comuns pela possibilidade de livre acesso, circulação, convivência e compartilhamento acabam sendo os comuns, mesmo se não falamos deles. Podem ser dons da natureza ou bens produzidos, mas tornados comuns. Aliás, falamos e muito quando são agredidos em sua essência de bens tornados comuns pelo uso e pelo fato de nos sentirmos verdadeiramente cidadãs e cidadãos neles, de cada um, mas ao mesmo tempo, de todas e todos que compartem a cidadania e a cidade. A essência de uma cidade reside aí, nesta espécie de senso comum carregado de bom senso civilizatório. Isto é uma verdadeira trincheira diante de um capitalismo selvagem. Mas pode ser destruído.
Estou escrevendo tudo isto por causa de dois momentos vividos na semana que passou. Na terça feira, dia 21, participei de um evento organizado pela Câmara Metropolitana, parte de um ciclo de debates sobre a Cidade Metrópole do Rio, compartida entre a capital e 20 outras cidades a ela integradas, mas municípios autônomos. O tema foi “Como levar Cidade para a periferia?”. O título me incomodou, pois me parecia que havia um viés no modo de formular a questão, onde se considerava cidade o padrão tipo Zona Sul da Capital. Na verdade, não foi nada disto. Por sinal, um bom e instigante debate sobre a cidade. O tom dominante das exposições e debate foi que na periferia faltava valorizar e priorizar o comum de uma cidade: ruas adequadas e equipamentos públicos para mover-se na cidade, iluminação, água e saneamento, acesso fácil a serviços de educação e saúde, poder trabalhar e adquirir bens essenciais na proximidade etc. Nada de pensar que a periferia é subnormal por definição. Ela é tornada subnormal pela negligência do poder público em qualificar aquilo que é comum a todos os moradores. Mas, ao seu modo, é uma cidade, que seus habitantes prezam. É tão difícil assim potencializar o comum e, através disto, reconhecer a comum cidadania de quem aí vive, com direito pleno à cidade metrópole como um bem comum de todas e todos, sem segregações e discriminações?
Na mesma semana passada, circulou a notícia de que o nosso prefeito Crivella – chamo de nosso porque investido pelo voto para ser o prefeito de nossa cidade, por acreditar na democracia apesar de tudo e por coerência com o que penso sobre os comuns – está agredindo uma das bases em que assenta o comum da nossa cidade. Crivella propõe autorizar a ampliação da instalação de cancelas privadas em ruas da cidade, em bairros inteiros até. A prática já existe nos tais condomínios privados, com seguranças controlando entradas e saídas. Ampliar isto para a cidade constituída, onde o ir e vir é livre, significa avançar em termos de privatização do comum. Simplesmente inaceitável! É a mesma prática que milícias privadas já fazem em certas áreas, com conivência das forças públicas de segurança, diga-se de passagem. Ter seguranças privados nas porteiras de ruas estratégicas privatizadas só muda o nome e não a essência da agressão à nossa cidadania e à nossa cidade. Não sei se é pedir demais ao Crivella para que se inspire, por favor, no bom senso. Afinal, ela já agrediu a essência simbólica de nossa cidade bem comum que nos dá autoestima, a festa popular do Carnaval.
Rio, 25/06/17