Rio de Janeiro, 20/05/2014
Mosaicos e Territórios
Por Cândido Grzybowski
Sociólogo, diretor do Ibase
Há um ano o Ibase está engajado num projeto que tem como preocupação central o fortalecimento de Mosaicos da Mata Atlântica. Trata-se de uma ação em parceria com Conselhos de Gestão, SEAM/SEA, INEA, FUNBIO, para fortalecer os Mosaicos da Mantiqueira, Carioca, Bocaina, Central Fluminense e Mico Leão Dourado, criados pelo Ministério do Meio Ambiente. Mas, para além das questões operacionais envolvidas, é importante que vejamos a novidade e o potencial que carregam os “mosaicos” na reconstrução e recomposição da nossa relação como seres humanos com a biosfera. A própria ideia dos “mosaicos” precisa ser abraçada pela sociedade, por toda cidadania ativa, pelo que traz de questionamento sobre os modos como nos organizamos, produzimos, e a necessidade de mudança de rumo, isto se nos preocuparmos com a justiça socioambiental e com a sustentabilidade da vida, de todas as formas de vida e do próprio planeta.
Ao reconhecer que áreas próximas de um mesmo bioma (de algum modo protegidas, mesmo se descontínuas, mas compartindo bacias hidrográficas e apresentando semelhanças e interdependências quanto aos ciclos da natureza e da vida), a criação dos “mosaicos” põe em destaque algo essencial nos territórios onde vivemos: o que são e como podem ser conformados os nossos bens comuns naturais, indispensáveis à continuidade da vida. Ser mosaico não é algo intrínseco. Somos nós, em última instância, que criamos o mosaico no esforço de preservar parte de um bem comum que ainda resiste e que pode ser regenerado. Aliás, o próprio caráter de comum não é intrínseco, e nem é um a piori. Ser comum é um resultado, uma consciência e uma prática comum. Os bens comuns não são comuns, mas se tornam comuns socialmente. Os bens comuns são aqueles que as relações sociais identificam e gerem como comuns. A necessidade sentida, almejada e enfrentada coletivamente leva a criar e desenvolver bens comuns. A desenfreada busca de acumulação capitalista privada promove a privatização e a mercantilização de tudo, cerceando e destruindo os bens comuns. O Ibase se engaja junto na viabilização dos “mosaicos” tendo esta motivação.
A Mata Atlântica foi quase extinta, começando pela empreitada da conquista colonial até o desenvolvimento predatório dos dias de hoje. A criação dos Mosaicos da Mata Atlântica só pode ser entendida no bojo de iniciativas que brotaram recentemente no seio da sociedade civil em defesa da Mata Atlântica. Mas a viabilidade dos “mosaicos” traz um grande desafio: precisam ser abraçados e defendidos socialmente como comuns, por todas e todos. Aí sim estaremos dando um passo decisivo na inversão de um lógica secular predatória e destrutiva. Afinal, resgatar e regenerar os “mosaicos” como nossos bens comuns naturais é mais do que resistir ao capital, é criar condições de outro modo de vida.
Na verdade, é impossível pensar os “mosaicos” e lutar por eles se não forem vistos e integrados como bem comum do território de que são parte. De uma perspectiva socioambiental, os territórios precisam ser vistos, eles mesmos, como bem comum, como espaços de vida humana que, como nos lembrou o nosso grande Milton Santos, combinam condições objetivas (suas características naturais únicas e o que nelas já foi fixado pela ocupação humana passada) com a ação humana do presente. Não são espaços físicos em si, mas espaços geográficos dinâmicos, com história humana passada e história humana em construção pela ação atual. O uso humano do território, predatório ou sustentável, qualifica a sua organização e lhe dá sentido histórico. Estamos diante do modo de ocupar e usar o espaço natural, de organizá-lo enquanto território humano, de vida em movimento. Portanto, a viabilidade dos “mosaicos” passa por nós, que estamos nos territórios e deles dependemos, assumirmos e lutarmos pelos “mosaicos” como bem comum. Mas para isto, ao mesmo tempo, precisamos resgatar o conjunto do território, dando-lhe um sentido de bem comum construído, e também precisamos romper com a lógica dominante ameaçadora de acaparamento, mercantilização, privatização e concentração de tudo, sem limites em sua capacidade destrutiva.
Repito aqui o que venho afirmando, como dirigente do Ibase, e sobretudo como militante de uma nascente cidadania planetária. A relação com a natureza, como condição do próprio viver, é de dependência e troca. As formas desta relação são diversas, tanto porque a biosfera e as condições naturais variam de um lugar a outro, como porque nós mesmos, criadores de cultura, de estruturas e relações, de economias e de poderes, somos muito diversos em nossa comum humanidade de dimensões planetárias. Os territórios, nas cidades ou no meio rural, exprimem esta diversidade resultante da simbiose, que se renova historicamente, de seres humanos com a natureza, a Mãe Terra, na radical expressão indígena. Voltar a nos ver como parte dos territórios, como nosso locus de existência, com suas possibilidades e limites, seus conflitos e sua história, pode ser o caminho de refazer e reconstruir a relação sociedade-natureza no respeito mútuo, de trocas vitais que reproduzem e regeneram, sem destruir. Trata-se de fazer um percurso mental e prático de relocalização, reterritorialização e redescoberta dos laços que nos unem ao bem comum natural em que nos inserimos e, com base nele, dos laços de convívio social e cultural, num planeta humanizado de interdependências, de responsabilidades e direitos compartidos, do local ao mundial, com justiça socioambiental, sustentabilidade e cidadania de todas e todos, de bem com a vida*.
Olhando atentamente para as lutas socioambientais nos territórios, a gente vê emergirem os pilares que precisam ser fortalecidos democraticamente em vistas da sustentabilidade da vida e do planeta. A luta democrática pelo resgate de bens comuns naturais, aqui identificados como “mosaicos”, é portadora de desafios, imaginários e direções para a necessária transição a paradigmas civilizatórios bioéticos, que, enquanto humanidade, precisamos fazer desde aqui e desde já. É nesta perspectiva maior que vejo o Ibase engajado com o projeto dos Mosaicos da Mata Atlântica.