Rio de Janeiro, 8 de setembro de 2014
BNDES, energia e seus investimentos hidroelétricos regionais
Por Gerardo Cerdas Vega
Sociólogo e pesquisador do Ibase
O IBASE, junto com International Rivers, o Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC) e a ONG peruana Ambiente, Derecho y Recursos Naturales (DAR), promoveram, no início do mês passado, um debate sobre o BNDES e os seus investimentos energéticos, tanto no Brasil quanto na região, focando nos impactos dos projetos hidrelétricos alavancados pela instituição. O debate constou da programação do Fórum Social Temático de Energia (FST-Energia),realizado entre os dias 7 e 10 de agosto, em Brasília.
A atividade teve a presença de 21 pessoas pertencentes a diversas organizações sociais, dentre elas o Fórum Teles Pires Vivo, o Fórum Matogrossense de Meio Ambiente e Desenvolvimento (FORMAD), a Comissão Pastoral da Terra (CPT), o Instituto Madeira Vivo, a Pastoral dos Pescadores e Greenpeace, dentre outras, todas as quais contribuiram com suas experiências de luta e articulação para enriquecer o debate.
Por parte do IBASE, o pesquisador Gerardo C. Vega apresentou os avanços parciais de um levantamento de dados sobre os investimentos do BNDES para as áreas de infraestrutura, logística e energia relativos ao período 2008-2014. Tomando como base as informações divulgadas pelo Banco, o levantamento de dados permitiu caracterizar as prioridades do BNDES sobre os tópicos em questão, identificando as tendências que se desenham para o futuro. Assim, foram identificados investimentos por um valor de R$ 257 bi nessas três áreas (só em operações diretas).
A maior parte desse total diz respeito a infraestrutura e logística, com um valor de R$ 164,5 bi de investimentos no período, abrangendo itens como portos, aeroportos, rodovias, pontes e ferrovias; terminais multimodais e terminais de armazenamento; ampliação e/ou construção de dutos de transporte de combustíveis (petróleo, etanol, gás), plataformas marítimas e refinarias; construção e/ou modernização de estaleiros, navios e rebocadores, assim como toda uma maciça transferência de recursos para infraestrutura vinculada à extração de minérios.
Pelo lado da energia, os investimentos totais identificados ascendem ao valor de R$92,5 bi no período, compreendendo em especial grandes projetos hidrelétricos (acima de 500 MW), pequenos e médios projetos hidrelétricos (abaixo de 500 MW), projetos nucleares, termoelétricos, eólicos e sucroenergéticos, assim como uma tendência evidente de investir fortemente na modernização de infraestruturas preexistentes e na construção de novas linhas de transmissão, em especial nas regiões desde e para as quais a energia produzida será canalizada.
Em termos gerais, os dados confirmam que a prioridade tem se colocado na criação da infraestrutura indispensável ao escoamento dos produtos do agronegócio e da extração de recursos fósseis e minerais. De fato, a exploração de petróleo tem ocupado lugar central no tocante a infraestrutura e logística, pois 41% dos investimentos em infraestrutura correspondem a esse item. Os dados confirmam, também, que a criação de toda essa rede de produção de eletricidade está orientada à atender a demanda, justamente, da indústria de mineração e do agronegócio, de forma que o círculo se fecha em favor dos mesmos setores e empresas que recebem os fartos recursos viabilizados pelo BNDES. Na verdade, infraestutura, logística e energia são três áreas intimamente interligadas, de forma que a análise da matriz energética está atrelada a análise mais geral do modelo de crescimento baseado em commodities que foi imposto à sociedade no decorrer da última década e meia.
Outras apresentações incluiram uma análise da expansão hidrelétrica na Amazônia e o papel do BNDES como braço financeiro dessa expansão. Para Alessandra Cardoso, do INESC, o papel do Banco tem sido fundamental para a materialização de grandes projetos como Santo Antônio, Belo Monto, Jirau, Estreito e Teles Pires, assim como a projetada hidrelétrica de Tapajós, dentre outros projetos de uma megarede de produção de energia idealizada para a região. Existe todo um discurso sobre a urgência de explorar o potencial hídrico da região norte dadas as crescentes necessidades energéticas “do Brasil”, discurso que tem sido completamente assumido pelo Banco para legitimar sua atuação. Os casos de Jirau e Santo Antônio, citados na apresentação com a finalidade de ilustrar a realidade da região, permitem ilustrar o papel do Banco na Amazônia, pois todo o processo de licenciamento ambiental, financiamento e construção das obras tem sido marcados por irregularidades, sem que o Banco como entidade financeira se importasse suficientemente com a dimensão socioambiental envolvida.
Mediante uma análise de linha de tempo, a representante do INESC foi mostrando como o Banco foi intervindo em momentos chave ao longo do processo de ambas barragens desde 2007 aproximadamente, inclusive antes dos leilões respectivos, dando viabilidade à construção das obras. Contudo, a atuação do Banco não tem sido transparente o suficiente, apesar da magnitude de ambos projetos e dos riscos socioambientais envolvidos em obras extremamente polêmicas e de uma utilidade pública, no mínimo, questionável. As ações de mitigação social financiadas pela instituição tem se mostrado também insuficientes; isso tudo leva a uma crítica da maneira em que o BNDES tem se envolvido com projetos extremamente costosos para a sociedade, favorecendo os interesses dos grupos historicamente beneficiados no Brasil mediante a construção de grandes obras. “É esse o papel que queremos para um Banco público de desenvolvimento?”, questionou a palestrante.
Por sua vez Brent Millikan, de International Rivers, problematizou o apoio financeiro do BNDES a grandes projetos hidrelétricos com implicações socioambientais tão delicadas, inclusive com violações evidentes aos direitos humanos, projetos dos quais os mesmos bancos privados teriam se afastado devido às polêmicas envolvidas e outros bancos públicos como o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal também não se decidiram a apoiar. A falta de uma política socioambiental clara foi novamente destacada com relação ao BNDES, especialmente com relação a hidrelétricas, com relação as quais deveriam ser contemplados os direitos das comunidades indígenas e demais povos tradicionais, tema diante do qual o Banco mostra completo despreparo. As tentativas de diálogo com o Banco para analisar os impactos socioambientais dos projetos foram ineficazes, ademais de ser extremamente difícil ter acesso às informações oficiais sobre os mesmos, tais como contratos. Todos esses elementos se conjugam para sustentar uma crítica a atuação do Banco com relação aos grandes projetos hidrelétricos como o Xingú e outros, nos quais sistematicamente são violados direitos de distintos grupos e povos assim como gerados impactos socioambientais sobre os quais não existe reparação efetiva.
Por sua vez, Patricia Patrón, representante de DAR, fez referência à problemática da construção de barragens hidrelétricas na Amazônia peruana; mesmo que o BNDES não aparece frequentemente como financiador das obras, tem indícios da potencial participação do Banco quando as empresas contratadas para construir as obras são as grandes empreiteiras brasileiras como OAS, Odebrecht, etc. Ademais, o Acordo Energético Peru-Brasil promoveu a construção de várias hidrelétricas, no marco de um conjunto de investimentos na Amazônia peruana voltados à extração das riquezas minerais, energéticas e da biodiversidade, incluindo a construção de estradas e outras obras no marco da IIRSA. Muitas dessas obras não guardam relação alguma com as necessidades energéticas do Peru, por tanto, surge a questão dos interesses por trás desses projetos, vinculados à expansão do capitalismo brasileiro e à necessidade de alimentar sua matriz exportadora a partir de energia extraída não apenas no seu próprio território, mas da pan-Amazônia como território estratégico. Embora diversas conjunturas políticas levaram à anulação do Acordo Energético entre ambas nações (por parte do Congresso peruano), a construção de barragens continua sendo uma ameaça para as comunidades indígenas e tradicionais no Peru, em especial na bacia do Rio Marañón, um dos principais tributários do Rio Amazonas. Desmatamento, expulsão das comunidades indígenas, destruição das bacias estratégicas da Amazônia peruana, são ameaças ainda presentes na região. Grandes empresas brasileiras tem interesse na construção desses empreendimentos, por tanto se faz necessário continuar monitorando o possível envolvimento do BNDES no financiamento das obras.
O debate que se seguiu, permitiu aprofundar nos questionamentos sobre a matriz energética que está sendo implementada não apenas no Brasil, mas na região como um todo, muito em especial na Amazônica como um todo. Foram questionados tópicos como a estrutura da demanda, não apenas da oferta de energia: quem demanda essa produção, qual modelo de desenvolvimento é o que necessita ser alimentado, quais as demandas efetivas da população e, muito em especial, quais alternativas energéticas são de fato indispensáveis na atual conjuntura.
Foto: IPS News