Túnis, 26 de março de 2015
Cândido Grzybowski
Sociólogo, diretor do Ibase
Hoje me deixei invadir pelo clima do Fórum Social Mundial. Em função da opção que fiz – refletir sobre o Fórum e seus desafios – selecionei participar de alguns ateliês autorganizados onde, pensei, poderia encontrar algumas ideias, questões instigantes, avaliações estratégicas. Primeira dificuldade, como todo participante, foi entrar no espaço do FSM 2015, no Campus da Universidade Farhat Hached El Manar, devido aos controles de segurança. Perdi 45 minutos de manhã para entrar e uma hora na volta do almoço. Segunda dificuldade foi achar a sala, sem mapa. Sorte que um batalhão de solícitos jovens voluntários ajudam. Mas, como sempre nos Fóruns, dado o seu tamanho, a gente acha a sala, mas a atividade mudou para outra. No caso desta manhã para a outra metade do Campus. Cheguei… às 10h para uma atividade iniciada às 8h30.
Devo reconhecer que no FSM as dificuldades que acabo de relatar não são exatamente um problema, pois no caminho você vai tendo a oportunidade de ver uma enorme diversidade de gente, de línguas e roupas, discussões livres em pequenos grupos aqui, música com batucada acolá, e as passagens da Universidade sendo invadidas por ativistas. E que maravilhosa invasão de juventudes do mundo com esperança no olhar e ávidas por participar! De repente você encontra alguém que há tempos não cruza e que dá satisfação em abraçar e trocar uma rápida prosa sobre como vai a vida e o ativismo político e cultural. O Fórum vai invadindo a gente naquilo que tem de melhor: encontro com gente que, conhecida e desconhecida, está no FSM porque, de algum modo, comparte conosco sonhos e motivações de um mundo melhor. Faço tais observações para descortinar o micro contexto e a atração que o evento do FSM exerce sobre seus participantes. Creio que isto é um dos lados bons do Fórum. Uma nova cultura política de esquerda deve estar baseada na alegria do encontro e da cumplicidade, do bem viver, com emoções e sentimentos facilitando a troca e a reflexão sobre o mundo e seus desafios, tornando mais humano o ativismo.
Quando finalmente encontrei as salas e o grupo de participantes, as minhas questões e dúvidas sobre o FSM voltaram com força. A atividade proposta foi sobre “Na direção de um Movimento Cidadão Mundial”. Ela foi programada para dois dias, com três ateliês em cada dia. Só isto já mostra o problema que apontei na crônica anterior. Parece uma proposta de unidade na diversidade, mas não é, está longe disto. Trata-se de uma iniciativa que se fecha sobre a sua própria proposta, ignorando todas as demais, mais de mil neste FSM. Na minha avaliação ela consegue talvez 100 participantes que já se conhecem entre si e não se abre para o desafio de dialogar com os milhares na sua volta. Aí está resumida a debilidade estratégica do FSM. Trata-se de programa feito de modo autorganizado, aberto a todas as propostas para captar a diversidade, aparentemente denso nos temas que aborda, mas na prática promove uma justaposição de atividades. Elas estão juntas no programa e no espaço do FSM, mas não na busca comum e compartilhada de algo novo. A proposta de convergência – com dois dias para isto – nunca funcionou a contento, pois também é autorganizada. Gera-se uma espécie de cacofonia política, ampliada pelo problema das línguas. Uma atividade em inglês, como foi a que escolhi, é totalmente excludente para o normal da cidadnia presente no FSM 2015, em sua maioria absoluta falando árabe, sem contar as muitas outras línguas.
Fui um atento ouvinte da parte do primeiro turno da atividade. Discutia-se o fosso entre movimentos sociais e as ONGs, sem nada de novo. Parecia algo para ocupar espaço e contar como presente mais do que um avançar nos desafios. Faltou aquele esforço fundamental de avaliação das iniciativas cidadãs existentes, que apontam para novos movimentos de cidadania, com possibilidades de impactar o mundo se formarem coalizões unitárias e estratégicas. Não podemos esquecer os desafios reais no concreto de nossas sociedades e das estruturas e processos de poder numa economia globalizada, concentradora de riquezas e destruidora do planeta, que limitam o aparecimento e o fortalecimento de sujeitos coletivos mais planetários. Além do mais, nunca poderá ser “um movimento cidadão mundial”, pois ou são diversos e plurais como a cidadania do mundo, ou não serão movimentos como tais. Basta de sujeito único! O FSM nasceu enfrentando o desafio de quebrar tal modo de pensar.
Após o almoço, no terceiro turno de ateliês, mudei para “O Futuro do FSM” em busca de alguma luz. Cheguei atrasado pelos motivos já apontados. Encontrei um pequeno grupo de 30 pessoas compartindo avaliações sobre o lado bom do Fórum e discutindo sobre possibilidades de realização do próximo. O Futuro, no caso, ficou restrito a ideias sobre onde fazer o próximo. Nem preciso dizer o tamanho de minha frustração, ainda mais que para alguns promotores da atividade – que tenho como amigos e cúmplices – já lhes falei de minhas dúvidas sobre a capacidade do FSM se reinventar estrategicamente diante dos desafios de hoje e de amanhã.
Enfim, continuo na minha participação observadora e cúmplice. Até agora devo dizer que apenas aumentei meu dilema. Sei que não é só meu e que nem poderei resolver sozinho. Como ativista e dirigente do Ibase, dei muito de mim mesmo para botar o Fórum Social Mundial de pé. Mesmo sabendo que tudo na vida nasce, cresce e morre, é duro ver uma iniciativa agregadora de cidadanias, tão nova, generosa e ousada como ideia, inspirador de esperança em diferentes povos, começar a perder relevância política neste contexto de um neoliberalismo mais agressivo e selvagem.