Cândido Grzybowski
Sociólogo, presidente do Ibase
O que estamos vivendo no Brasil neste momento é um grande desafio para analistas políticos e ativistas que compartem os princípios e valores éticos da democracia que, sem dúvida, está ameaçada em termos práticos. Mas, admitamos, é muito simplista e nada útil atribuir tudo o que se passa a uma pouco analisada e explicada fascistização da política. Que estamos diante de uma ameaça de barbárie não dá para ter dúvidas. E ela está avançando no mundo inteiro, pelo selvagem processo de globalização capitalista, que se acapara de tudo e de todos e que nos dá – por vias tortas, mas reais, da extrema desigualdade social e destruição ecológica – a vivência e a consciência de um destino comum como humanidade num planeta ameaçado em sua integridade ecossocial. Diante do tal capitalismo com sua barbárie, será que o foco e as nossas categorias analíticas estão ajustados?
Estou refletindo sobre isto por necessidade de associar tudo o que venho pensando sobre as possibilidades históricas de produzirmos novos paradigmas que nos apontem caminhos de transformação e as inadiáveis tarefas emergentes e urgentes que a barbarização nos joga no colo. A primeira sensação é de estar diante de movimentos reais mais radicais e profundos ainda não bem radiografados e compreendidos. A segunda é a necessidade de ajustar a lente e mapear melhor os movimentos da estrutura do capitalismo globalizado e suas conjunturas e manifestações no campo da luta política, produzindo resultados ao mesmo tempo novos e extremados, pouco ou nada democráticos, como Trump, nos EUA, e Bolsonaro, no nosso meio, mas parte de uma grande onda que se alastra como um tsunami pelo mundo.
Nas buscas que estou fazendo, tive a oportunidade de ler a entrevista com Gabriel Tupinambá para Vitor Necchi, publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos. Como estou fazendo umas notas para a minha participação no VII Círculo – Rodas de Conversa Bakhtiniana – “Fronteiras”, na UNIOESTE, em Cascavel, Paraná, me deparei com o desafio imediato de entender as fronteiras políticas em movimento e aquelas novas neste mundo ameaçado pela barbárie. As pistas apontadas por Gabriel Tupinambá estão se revelando muito úteis para o desafio de ajustar o “mapeamento cognitivo”, na expressão por ele usada.
As fronteiras continuam sendo o que sempre foram: barreiras que separam e excluem. Elas são incontáveis em sociedades organizadas em classes antagônicas. Podem ser físicas ou simbólicas, geopolíticas ou ideológicas, impostas por Estados pela força militar, leis e instituições, ou aquelas sorrateiras, vividas e sentidas como realidade das relações sociais no cotidiano. O fato é que fronteiras existem como uma convenção social subjacente, dada e conhecida, um parâmetro para entender as sociedades e sua história, seja como categoria prática, para gente saber o seu próprio lugar na sociedade, ou para a análise mais científica. Mas como tudo, também as fronteiras estão sempre em permanente movimento pela força das contradições da estrutura social e sua manifestação nas lutas políticas.
As questões das barreiras aos migrantes, da xenofobia, da intolerância e ódio aos não “nacionais”, da violência exacerbada no cotidiano, no Norte e no Sul, no Leste e Oeste do planeta, são sinais reveladores de fronteiras em movimento. Será que as categorias políticas e as analíticas tradicionais sobre Estado Nação, soberania e interesse nacional, imperialismo, democracia x ditadura, países desenvolvidos x subdesenvolvidos e/ou em desenvolvimento – todas tendo como conceito referencial a fronteira política – dão conta das mudanças em curso, das fronteiras de segregação e exclusão que se movem? Em parte sim, mas não na sua essência. Com o novo modo de ser do capitalismo das grandes corporações econômicas e financeiras, inspirado no neoliberalismo sem nenhuma regulação, do 1% contra 99%, na periferia do sistema-mundo, mas também no seu centro, a precarização e o viver no precariado é a grande ameaça de exclusão/segregação que se soma e potencializa todas as outras, nunca resolvidas. Já há alguns anos venho usando as categorias analíticas da rede Great Transition Initiative, que trabalha com cenários das possibilidades contidas no movimento das contradições do mundo globalizado pelo capital. Segundo a rede, na atualidade, a barbárie de um mundo de guetos e de fortalezas para proteger poucos ou, até, uma catástrofe, deve estar no nosso horizonte analítico como uma grande possibilidade pelo que está acontecendo.
A pergunta que importa fazer de uma perspectiva de “mapeamento cognitivo” é ver o que é novo em termos estruturais com reflexo na consciência social e na política. Sem ajustar nossas categorias analíticas e, assim, entender a nova realidade, que move fronteiras do real e do pensar, não vamos entender nem encontrar respostas políticas para as novas questões. Ao invés do desenvolvimento e de mais inclusão social, o capitalismo neoliberal globalizado com sua determinante lógica de acumulação financeira está impondo a precarização e barbárie com novas fronteiras geopolíticas e internas. A precarização ameaça tanto as maiorias dos centros capitalistas desenvolvidos, como radicaliza a exclusão e o retrocesso em direitos no mundo todo. É isto que alimenta a onda atual anti sistema que está aí, autoritária, excludente, redefinindo tanto o modo de organização das sociedades como os desafios para a democracia e o nosso bem comum maior, o planeta Terra. Ao invés de mais democracia, estamos diante de mais barbárie e destruição. Esta é a chave analítica para entender o movimento teutônico das fronteiras da modernidade capitalista eurocêntrica, sem negá-las. Neste contexto, os fantasmas viram realidade.
Rio, 13/11/18