Cândido Grzybowski
Diretor do Ibase
É em ano eleitoral, como este, que fica mais evidente um dos grandes entraves no processo de democratização do Brasil. Não vou lembrar aqui tudo que superamos desde as “Diretas Já”, em 1984, ao derrotar a ditadura imposta pelo golpe militar em 1964, cinquenta anos atrás. Vou, sim, me ater ao que não conseguimos extirpar de nosso seio apesar dos avanços. Trata-se da predominância dos interesses particulares ou corporativos sobre o bem comum e interesse público. Este é um câncer que corrói a esfera política democrática, limitando o poder de transformação da democracia como método e processo, que, por definição, é de disputa e negociação para que o bem comum seja possível.
A questão desafiante é como criar representação política em democracias que não se vire contra os representados. O descrédito nos políticos, crescendo espantosamente entre nós, não deve ser tomado como negação da política em si, e sim da forma como os representantes eleitos lidam com ela. A política, entendida como busca de sentido e projeto comum, como construção coletiva da sociedade, ocupa o cotidiano de todo mundo, tanto em casa, como no trabalho, na associação ou na igreja, na rua, na praia ou no bar, em conversas e debates com amigas e amigos. Próprio da política na democracia é sintonizar a cidadania com as instituições, via representação eleita pelo voto. Tomando especificamente o caso brasileiro, a nossa democracia tem um desafio diante de si que é se libertar do aprisionamento da representação eleita por interesses fisiológicos truculentos. Derrotamos a ditadura, mas não o fisiologismo.
Gostaria de esclarecer melhor a questão. Política, como prática de todo mundo, é busca humana dos significados e direções para a vida, não importa onde, é a busca que nos faz humanos por excelência. Todas e todos somos políticos neste sentido, porque todas e todos nos sentimos detentores de direitos e responsabilidades cidadãs. A crítica que fazemos à “política” é, na verdade, uma crítica política ao modo como os eleitos nos representam. Politicamente, desacreditamos da representação como instituição para dar conta das nossas demandas por mais democracia e cidadania. O problema é que muitas vezes – mais do que menos – alguns nos usurpam tal direito instituinte e constituinte da cidadania. Cidadania pode ser aplastada, dominada e silenciada, mas não extinguida. Muitos, em diferentes sociedades ou momentos históricos, podem estar inconscientes de sua cidadania, mas isto não a torna menos importante, pois a hora de sua expressão pode vir a qualquer momento, como estamos vendo hoje no Brasil e pelo mundo afora.
Feita esta digressão, voltemos ao nosso dia a dia. Uma das expressões maiores no Congresso Nacional hoje é Eduardo Cunha. O homem é duro em seu fisiologismo no “toma lá, dá cá”. Lembra o Robertão, aquele do “centrão” em tempos da Constituinte e da Nova República, que transformou em fisiologismo um sublime princípio franciscano do “é dando que se recebe”. De fato, Robertão ontem ou Cunhão hoje são a face de muitos no Congresso Brasileiro. Como explicar que 70 mil endinheirados do agronegócio tenham uma bancada de mais de 140 no Congresso Nacional e os mais de 4 milhões de agricultores familiares consigam eleger 10 a 12 representantes? As empreiteiras, os bancos, as grandes corporações, os proprietários de minas e terras, ao transformar as eleições em mercado eleitoral e com seu financiamento de campanhas distorcer totalmente a disputa eleitoral, são o poder real representado no Congresso e não a cidadania. Como resultado, temos um Congresso que é confederação de interesses corporativos econômicos privados, com prática de fisiologismo, e não um Congresso cidadão.
Por que a democracia brasileira emperra aí? A questão é simples de responder, pois numa situação como a dominante na representação política no Brasil não prepondera a busca do bem comum – a bem da verdade, uma parte importante de parlamentares, em diferentes partidos, deve ser reconhecida como zelosa do bem comum e do interesse público republicano – mas sim a realização de objetivos particulares antes e acima do bem público. Isto contamina e corrói a política e a própria democracia. O nosso problema é velho, pois o Estado entre nós sempre esteve a serviço de interesses privados. Mas nos atendo ao mais recente, o centro do problema foi o fisiológico Sarney não ter convocado uma Assembleia Constituinte Exclusiva. O Congresso que virou Constituinte foi eleito pelas regras herdadas da ditadura. Como mexer nas regras da disputa eleitoral se seus beneficiários eram os próprios constituintes?
Hoje começam a prosperar diferentes ideias de Reforma Política. Ainda falta muito para que isto se torne bandeira de cidadania, condição sine qua non de verdadeira transformação na representação democrática. A coisa tem que tomar as ruas e se tornar uma onda irresistível. Na surpresa das manifestações de junho de 2013, ficou evidente que uma das questões por trás é a deslegitimação dos “políticos”, dos partidos e dos eleitos. A rua, espaço por excelência da cidadania, mostrou o seu protagonismo. Propostas de reforma política, até através de Plebiscito e Constituinte exclusiva, foram levantadas… pelos atuais representantes políticos. Tudo parece ter passado e voltamos ao de sempre.
Para concluir, lembro que é próprio da cidadania a surpresa. Tudo pode acontecer neste cenário eleitoral que está armado. Cunhão e seu bando no Congresso, os candidatos para presidência e governadores serão vistos com olhos de uma cidadania que já mostrou estar indignada e impaciente. Penso que a cidadania desta vez vai ferir de morte o fisiologismo ou, ao menos, apontar o caminho que precisamos seguir para mudar o que precisa ser mudado.
Rio, 16/03/2014