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Fazer política é se engajar na disputa de hegemonia

Cândido Grzybowski
Sociólogo, presidente do Ibase

Em minha última crônica, de 26/11, defendi a ideia que precisamos voltar a disputar sentidos, direções e propostas no seio da sociedade civil, berço real da democracia como processo transformador. Volto a esta reflexão, desta vez sobre algumas das grandes questões incontornáveis que exigem aprofundado esforço coletivo de análise, debate e ação cidadã, gestando idéias e propostas capazes de agregar nossas diversidades, sem negá-las, e de nos forjar como bloco histórico com vontade para outro Brasil e outro mundo. Tarefa ousada, longa e difícil, que exige determinação e paciência.
Começo pela perspectiva ecossocial, um fundamento ético, filosófico e político. Algo ainda embrionário e de intensos debates em alguns círculos, mas inspirador pelo que implica. De modo simples, trata-se de enfrentar a questão filosófica e epistemológica de fundo: não é possível fazer justiça social sem enfrentar a destruição ecológica ou, como algumas correntes ecologistas pensam, é impossível conservar a natureza sem justiça social. De modo mais preciso, não dá para garantir e ampliar direitos humanos em detrimento dos direitos da natureza. Precisamos enfrentar o antropocentrismo inerente ao nosso modo de viver e pensar, mesmo na esquerda. Somos natureza e dependemos da integridade dos sistemas ecológicos para viver. Viver é trocar, é interdepender, é ser parte de toda sociedade, em busca da igualdade, e do todo o que é a biosfera e o planeta de que dependemos intrinsecamente e que nos cabe cuidar.
Particularmente, o capitalismo e a sua ciência voltada ao domínio e exploração estão nos levando ao ponto em que estamos: exploração social do trabalho sem limites, combinada com destruição da integridade do planeta, também sem limites. A concepção ecossocial nos obriga a pensar tanto nos direitos humanos como nos direitos da natureza. E democracia ecossocial vai ainda mais longe, pois combina, de forma estrutural, o modo de gestão social com o modo de gestão ecológica. A mudança climática é o sintoma mais visível do paradigma civilizatório do capitalismo radicalmente injusto em termos sociais e extremamente destrutivo da vida, voltado para o 1% contra os 99%. Esta é uma discussão de fundo entre nós mesmos, mas que precisa ser enfrentada e estar no centro do pensar novos paradigmas hegemônicos, para além do socialismo histórico, ecologicamente destrutivo.
Outra questão incontornável é pensar nos conceitos políticos de “povo”, “nação”, “soberania”. Basta lembrar o que está ocorrendo entre nós e que acabou determinando o resultado eleitoral de outubro passado. São todos conceitos prenhes de contradição, carregados de conflitos. Importa o que evocam e a adesão que recebem. O fato é que fomos derrotados por esses conceitos, pela apropriação e uso deles pela mais extremada direita, de feições claramente autoritárias, potencialmente fascistas. Até os símbolos que deveriam expressar unidade entre nós viraram divisão. O que se passou afinal?  Vejamos o conceito mobilizador de “povo” para melhor entender como é algo sempre construído em situações históricas concretas. Hitler e Mussolini souberam explorar muito bem tal conceito, o que na sua visão fascista era “povo”. Mas o mesmo se pode dizer de “nação” e “soberania”, como nos lembra bem Gramsci em sua autocrítica radical de esquerda nos Cadernos do Cárcere, quando viu que o próprio conceito de liberdade é um constructo conflituoso.
Nós falamos permanentemente em tais conceitos sem nos preocuparmos com o que carregam. Na verdade, nunca construímos uma visão de soberania e de nação radicalmente oposta ao que tais conceitos políticos significam no senso comum. Sim, para mudar e disputar precisamos sair do senso comum e extrair o bom senso aí contido, como nos lembra Gramsci. Será que soberania popular e nacional é a mesma coisa que pensa a direita sobre povo e soberania? Aliás, povo é uma noção pejorativa para as classes dominantes, mas não impede que os oportunistas políticos deixem de justificar suas bravatas e absurdas propostas em nome do povo. Até a Constituição fala em um povo soberano genérico, próprio do discurso jurídico abstrato. Povo de verdade se faz na luta, como, por exemplo, no “povo sem medo”. Mas precisamos de muito, muitíssimo mais. Afinal “negros e negras”, “indígenas”, “favelados e faveladas”, “periferias”, “sem terra”, “sem teto”, “agricultores familiares”, “trabalhadores e trabalhadoras”, “domésticas”, “ambulantes” e tantos mais são todos formas sociais de ser do “povo”. Como construir a “soberania popular” de tal povo? Este é o desafio. Não podemos continuar falando em tais conceitos sem acentuar suas diferenças e que inspiram uma luta por democracia ecossocial para todos e não só para os “donos de gado e de gente”.
Importa nos indagar sobre o quanto refletimos, elaboramos, criamos a partir destas verdadeiras culturas e modo de ser brasileiros que compõem a nossa visão de ser “povo brasileiro”. O que elas contêm de dominação estrutural e, sobretudo, de possibilidades de outro futuro? Estamos diante de um grande déficit, sobretudo nas grandes cidades do Centro-Sul, aliás, cidades construídas pelo trabalho, em particular de nordestinos migrantes e da exploração do Nordeste e Norte como reservas de mão de obra e da natureza para um capitalismo dependente e subalterno do sistema mundial globalizado.
Aqui cabe lembrar o que significam os tais “recursos naturais nossos”, sob soberania do Brasil, particularmente a questão a Amazônia, as reservas naturais, minerais e energéticas, e as grandes jazidas de petróleo do pré-sal. Continuamos a empreitada colonial, desta vez internalizada, em nome do desenvolvimento. Invadimos e grilamos terras, matando, desmatando, expandindo o agronegócio voltado para a exportação, fazendo enormes barragens, implantando gigantescos projetos extrativistas minerais. Não adianta jogar a sujeira debaixo do tapete, pois a maioria absoluta da esquerda faz vista grossa ao que é considerado como “condicionalidades inevitáveis” do desenvolvimento entendido como progresso necessário e possível, justificável pela sua lógica destrutiva em nome de um abstrato bem estar coletivo. Até quando? Pior do que isto é ver no petróleo do pré-sal a nossa redenção soberana e não apenas uma possibilidade de nos livrar da dependência do petróleo estrangeiro e de nos mover para modos mais sustentáveis de energia. Há pouca variação entre a esquerda e a direita sobre tal tema, virado consenso nacional. Vamos deixar buracos de minas, de poços de petróleo e um novo semiárido amazônico desflorestado para gerações futuras, nossos netos e bisnetos?
Termino lembrando uma grande questão de ordem essencialmente social, apesar de minha preocupação ecossocial. No fundo, trata-se de um lado da mesma mazela. Estou me referindo às dimensões estruturais do racismo, patriarcalismo e machismo. Não podemos mais aceitar, ou melhor, precisamos enfrentar radicalmente o modo de ver tais questões como meras questões “identitárias”. Estamos diante de relações fundantes da própria colonialidade do capitalismo como modernidade civilizatória, eurocêntrica. Entre nós, da periferia do sistema capitalista em suas várias fases de expansão, não existe modo de se organizar e ser que não seja racista e patriarcal-machista, até hoje, com esta globalização total. Mas as “fronteiras” sociais e nacionais continuam vivas, desde nossas casas, nas ruas, na estruturação das cidades e nos territórios em geral. Parece até que nós mesmos não vemos a dominação da raça e gênero e, colonizados pelo eurocentrismo, até de esquerda, não vemos a relação entre exploração do trabalho com esse tipo de dominação, como uma lei social fundante e pétrea da dominação do capitalismo. Ou enfrentamos isto ou jamais construiremos um novo conceito de “povo” como conceito histórico emancipador e libertador, de uma verdadeira democracia ecossocial para outro Brasil e outro mundo.
A minha proposta continua na próxima crônica. Afinal, estou com perspectiva para além dos próximos quatro anos ameaçadores.
Rio, 10/12/2018

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