Cândido Grzybowski
Sociólogo, presidente do Conselho de Governança do Ibase
Vivemos em nosso país uma situação que se avizinha de uma grande tragédia produzida pelo poder político dominante. Ela vem se agravando desde a preparação do impeachment de Dilma Rousseff, se acentuou com o governo golpista do Michel Temer e agora se acelera e parece incontornável com Jair Bolsonaro e sua destrutiva agenda de governo. Além do ataque a princípios e valores éticos fundamentais para a convivência democrática entre todas e todos, estamos diante de um governo que não esconde sua opção racista, patriarcal e homofóbica. Ao mesmo tempo, está buscando de todas as formas destruir os limites, pesos e contrapesos da institucionalidade democrática, atropelando a própria Constituição e contaminando as relações entre poderes da República. Apesar de sua proclamação de “Brasil acima de tudo e Deus acima de todos”, o que está em jogo é a mais vergonhosa inserção subordinada do país aos interesses estratégicos do imperialismo dos EUA. Estamos, de fato, em processo de destruição do pouco de soberania que tínhamos para definir nosso destino no contexto das nações, criar condições de bem viver para o nosso povo em sua diversidade cidadã e zelar pela integridade e uso sustentável do bem comum natural, indispensável para a vida de todas e todos, no nosso Brasil, na região e no mundo.
A tragédia se avoluma rapidamente a cada dia em duas frentes principais. De um lado, estamos diante de um ataque ao conjunto de direitos duramente conquistados pela redemocratização e do desmonte das ainda frágeis mas virtuosas políticas de inclusão social e proteção ambiental. O que está ocorrendo na reforma da Previdência Social, na educação, universidades públicas e cultura, cinema e cotas de acesso a universidade, bolsas de estudo, na saúde, no Sistema Único de Saúde (SUS) e na segurança pública, tanto pelos cortes orçamentários como pelas propostas em curso, aponta um retrocesso até difícil admitir que possa estar acontecendo entre nós. De outro lado e em articulação orgânica com a primeira frente, está sendo imposta uma lógica e um processo ultraneoliberal, de absoluto domínio do livre mercado na organização da economia, visando essencialmente a destruição política e prática da capacidade do Estado vir a regular democraticamente o que quer que seja no domínio econômico. O “Estado mínimo” embutido na combinação das duas frentes é de um Estado autoritário e repressivo, que nos permita praticar o capitalismo mais selvagem, sob a hegemonia das grandes corporações e da especulação financeira. Isto vai do desmonte de políticas e instituições combinando com a mais radical e ameaçadora privatização de tudo, no meio ambiente, indígenas, quilombolas, reforma agrária e agricultura familiar, pesquisa científica e tecnológica, universidades, água e saneamento, correios, agronegócio, mineração e petróleo, energia elétrica, financiamento do desenvolvimento e bancos públicos.
O pacote de maldades ainda pode ser maior, mesmo tendo alguns sinais de freios do Congresso e do Poder Judiciário, mas eles mesmos já bastante comprometidos com a mesma agenda. Como pode estar acontecendo tudo isto dentro da formalidade democrática liberal e sem a institucionalidade de uma ditadura? Militares de alta patente, em postos chaves da administração civil, apoiando diretamente o governo do desvairado capitão não faltam. Uma evolução bem possível é a instituição de um fascismo na prática, nos jogando na mais direta barbarização, com total destruição ecossocial. Aliás, de algum modo a lógica e o processo instaurado já dá sinais concretos de barbárie no cotidiano. Não há como esconder os milhões de excluídos ou em processo de exclusão. Afinal, ao menos a metade da população ativa está desempregada, desalentada ou na precariedade total da economia informal. Não vê quem não quer, mas a gente não tem como escapar da miséria e fome estampada nas ruas das nossas cidades. Oficialmente, o discurso nega e busca alterar os dados do emprego e situação social. Como, aliás, nega a mudança climática e os próprios dados que apontam o assustador crescimento das queimadas. Pior, continua não aceitando que suas políticas estão no centro da questão da expansão da frente de colonização interna sobre a Amazônia, puxada por grileiros, garimpeiros e agentes do agronegócio, com motosserras e muito fogo criminoso, sobre os povos e os territórios protegidos. Mas os balanços das grandes corporações econômicas e financeiras, sem realmente produzir bens e serviços e aumentar empregos e o PIB, apontam fantásticos lucros bilionários.
Aqui cabe lembrar que tão esdrúxula situação brasileira, de formalidade democrática e avanço da barbárie, não é uma novidade no mundo. Isto vem ocorrendo nos EUA com Donald Trump; na Argentina com Mauricio Macri; na Colômbia com Iván Duque; na Turquia com Recep Ergodan; na Polônia, na Hungria, nas Filipinas e muitos outros. Lembro aqui os casos mais emblemáticos. Todos com governos democraticamente instituídos. Ou seja, não temos como negar a própria crise da democracia nos dias de hoje. Ela foi e está sendo, cada vez mais, apropriada por potentes forças autoritárias e conservadoras surgidas das classes dominantes com apoio de amplos setores médios e populares. Mas não se ganha eleição sem maioria! A novidade é a capacidade de tais forças da classe dominante, claramente provindas do capitalismo mais selvagem, de disputar valores, visões e propostas no seio das sociedades civis com agendas autoritárias, religiosas, nacionalistas e xenofóbicas, de intolerância e ódio. A conquista de hegemonia política explora as contradições e frustrações junto aos que se sentem ameaçados de alguma forma pela globalização capitalista liberal, sem controle. É um dado de realidade que tais blocos de forças conservadoras e autoritárias têm vencido e avançado, em países importantes, através de eleições livres. Esta é uma grande questão democrática que temos pela frente.
Aqui necessito chamar atenção para alguns pontos que me preocupam profundamente no debate e nas propostas que tem surgido, particularmente na esquerda brasileira, com suas múltiplas divisões e lutas internas. Primeiro, não sou catastrofista, como se tudo isto fosse inevitável e não podendo ser transformado. Claro, se não nos renovarmos, se não assumirmos nosso intransferível papel de cidadania instituinte e constituinte e se nada fizermos a tempo, desde aqui e agora, a cada dia a barbárie ficará mais real e, sim, poderá ocorrer uma destruição ecossocial de proporções que a gente nem sabe com que consequências.
Um segundo ponto fundamental é fazer um adequado diagnóstico do problema de fundo. Estamos numa encruzilhada histórica de exacerbação da expansão capitalista com sua lógica e processo de sistema mundo de exploração e dominação (na bela expressão de Immanuel Wallerstein, falecido no início deste mês). A globalização neoliberal funciona para 1% contra 99% da humanidade, gerando desigualdade social e destruição ambiental de dimensões planetárias, que defino como destruição ecossocial ameaçadora. O multilateralismo e suas instituições estão se revelando incapazes de minimamente regular tal sistema assentado no livre mercado e acumulação capitalista sem limites Ganham os conflitos geopolíticos e perdemos todos como povos do planeta. Ganhos em percepção de que na diversidade natural e de culturas, somos uma mesma humanidade diante dos mesmos desafios, perdemos valores e identidades, direitos e capacidade de nos aceitarmos uns e umas aos outros e outras, demonstrando ódio e intolerância. O que é soberania e Estado nacional num quadro assim? A combinação e simultaneidade e crises em curso (social, cultural, política e econômica, climática, ecológica, migratória, para ficar nas mais evidentes) tem a ver com a busca de crescimento a todo custo e para poucos. Simplificando, estamos diante de emergências que apontam para uma crise mais profunda, de modelo civilizatório dominante no mundo.
Em terceiro lugar importa assinalar que o fim pode chegar mas não chegou e que a barbárie está longe de ser a única e inevitável alternativa diante da humanidade. Mudança de sistema e de modelo civilizatório sempre está no horizonte humano e histórico, mesmo quando parecem ter poucas chances. Buscar alternativas possíveis, reconhecê-las, apostar sonhos e força de vontade nelas para viabilizá-las é um desafio a ser enfrentado, por mais duro que seja. Sinais disto também pipocam ao redor do planeta. Muita gente está engajada em tal busca e prática política por alternativas civilizatórias, botando o melhor de si. Precisamos dar maior atenção a isto e não só ao imediato da urgência política imposta pelo ocupante do Palácio do Planalto.
Lembro aqui a pertinente análise de Boaventura Sousa Santos de como olhar e observar o necessário e possível de fazer no aqui e agora, mirando para grandes horizontes do clima social, econômico e político. Ele usa como imagem a sabedoria de estender a roupa nos fios do varal para secar, atividade predominantemente feminina, apontando que elas desenvolveram um saber fazer que combina o estender e prender a roupa e avaliar bem o clima, a direção dos ventos, a segurança da própria roupa. A tarefa de secar a roupa terá êxito si tudo isto for bem combinado. A partir de tal exemplo e lição, Boaventura aponta como a esquerda prioriza o tático e o estratégico do horizonte imediato, perdendo a dimensão do horizonte civilizatório de largo prazo, suas tendências e possibilidades. Tal separação entre horizonte político e horizonte civilizatório é nova e as esquerdas precisam trabalhar nos dois níveis[i]. A disputa de transição democrática possível passa por não desdenhar nenhuma das dimensões e tarefas políticas que isto implica, renovando-se como cidadania ativa.
Termino enfrentando o espinho problema que está por trás de minha reflexão política nesta crônica. Penso que não saberemos enfrentar o desafio de nos reinventar, reposicionar e lutar na conjuntura sem consistentes e coerentes visões e propostas de mudança de sistema e construção de novos paradigmas civilizatórios de futuro. A necessária tarefa política de resistência cidadã e defesa da democracia na conjuntura mais imediata não se esgota em si mesma e nem pode exaurir nossos sonhos, vontade e ousadia de, desde aqui e agora, criar a condições de disputa política e cultura de construir democracia ecossocial como alternativa de outro futuro possível. Não penso que seja suficiente impedir o pior defendendo apenas a soberania que também foi dominadora, patriarcal e segregadora, o Estado comprometido com o desenvolvimento visto como crescimento econômico fazendo dele depender a justiça ecossocial, uma democracia de baixa intensidade sem capacidade de enfrentar a lógica de privilégios acima de direitos de cidadania,como temos agora. Sem dúvida, estas são algumas condições necessárias, mas nossas visões e propostas tem que ter clareza e coragem de ir além, apontando mudanças mais substantivas para uma transição civilizatória possível exigida por muitos movimentos sociais. A transição que fizemos com uma frente ampla 30 anos atrás foi um marco para a nossa jovem democracia, mas não foi capaz de crescer em intensidade e tornar impossível um retrocesso como vivemos hoje.
Movimentos de cidadania na rua, ampliando e radicalizando a disputa de direitos iguais, são a forças de grande potência criativa na edificação de democracias substantivas. Por isto, a cidadania ativa, em sua diversidade de identidades e formas, é condição democrática indispensável para formar e empurrar coalizões e pactos políticos amplos no sentido transformador do horizonte civilizatório. Como se diz lá no meu Rio Grade do Sul, está vivo quem peleia. O sonho e a esperança de outro mundo, a visão estratégica do necessário e do possível, a ousadia e energia da vontade organizada são o cimento agregador de movimentos de cidadania irresistíveis. A barbarização só poderá avançar se desistirmos de lutar.
[i] Boaventura Sousa Santos. “Ver horizontes em lós hilos de tender”. Other News, voces em contra de La corriente (versão em espanhol) . <HTTP://www. ther-news.info/notícias>