Cândido Grzybowki
Sociólogo, diretor do Ibase
A publicação da encíclica sobre o meio ambiente pelo Papa Francisco é, sem dúvida, uma contribuição fundamental neste momento de emperramento das negociações em torno à mudança climática. A COP-21, no fim do ano, em Paris, está amarrada pelas posições defensivas de países desenvolvidos e dos tais emergentes, Brasil no meio deles, todos reconhecendo o problema, mas condicionando mudanças nas suas políticas econômicas e ambientais a questões de emprego e crescimento. A não ser que uma enorme pressão social surja e leve à Conferência à necessidade de atender ao clamor da cidadania planetária – algo até possível, mas não garantido de antemão – vamos terminar 2015 com um compromisso vago e nada impositivo de engajamento dos países em dar a sua contribuição indispensável. O problema é que o clima e o planeta não podem esperar por mudanças.
Neste contexto, que bom que chegou uma encíclica da Igreja Católica – Laudato si, “Louvado sejas tu” – posicionando-se a respeito. Sua importância reside no fato de chamar a atenção para a crise ética, cultural e espiritual da modernidade que está no fundo da crise climática e ambiental. Trata-se de filosofias de vida, de concepções e práticas, na base de nossos modos de produzir, consumir e viver, que justificam um modo predatório na relação com a natureza. É bom que o Papa Francisco considere a natureza como nossa “casa comum”, uma “herança comum, cujos frutos devem beneficiar a todos”. Inspirando-se em São Francisco, que lhe deu o nome, o Papa louva a natureza. Com pertinência, associa a questão da destruição ambiental à questão da injustiça e da desigualdade social. Reconhece a responsabilidade humana na crise atual e apela para todos e todas, católicos e não católicos, crentes e não crentes, para uma “ecologia integral”.
É fundamental que igrejas se posicionem a respeito, pois a questão não é somente de racionalidade científica e técnica, mas é, antes de mais nada, de concepções e valores éticos. É quase unanimidade científica atribuir à ação humana, em especial a partir da revolução industrial e do uso intensivo de energia fóssil, a responsabilidade pela destruição ambiental e mudança climática. Mas se passamos dos limites do respeito à integridade do planeta Terra, muito se deve ao antropocentrismo, caro a muitas religiões. A Bíblia é clara a respeito de considerar uma verdadeira missão humana o dominar a natureza.
Mas a revisão de filosofias e religiões não pode ficar só no aqui e agora, indispensável e urgente. Precisamos rever conceitos, ensinamentos e até cosmovisões profundamente arraigados nas filosofias, teologias e religiões que adotamos. No caso da encíclica do Papa Francisco, falta reconhecer toda a responsabilidade da orientação religiosa, moral e ética da Igreja Católica ao alimentar um antropocentrismo conquistador, tanto da natureza como de tudo que fosse diferente de seu modo de ver. Afinal, nunca dá para esquecer que foi em nome da Igreja que se fizeram conquistas, colonizações, massacres de povos inteiros, escravidão, catequese e extração sem limites de recursos naturais. Em nome do “reino de Deus” e do antropocentrismo de inspiração religiosa muita injustiça e destruição foram geradas. E o que dizer da “ética protestante e o espírito do capitalismo”, na brilhante análise de Max Weber, cujo sistema é o grande responsável pela crise atual?
Sinceramente, esperava uma mea culpa da Igreja Católica, como espero de todas as outras. Não que eu mesmo esteja fora e sem responsabilidade alguma pelo que fizemos e somos, como parte desta civilização consumista, predatória ambientalmente e injusta socialmente. Também fui educado no cristianismo católico e devo ao seminário capuchino muito do que sou como cidadão, ativista e pensador. O santo que sempre me inspirou e ainda me influencia é São Francisco de Assis, de encantamento e louvação da natureza, mesmo se minhas crenças viraram heterodoxas. Mas acho que um câncer corrosivo, que nos está destruindo, é o antropocentrismo de quase todas as religiões. Por que é tão difícil nos vermos como parte e totalmente dependentes, mais uma espécie viva entre tantas, de um sistema natural único, mas essencialmente diverso e integrado? Não há vida humana sem os outros seres vivos, sem a água que bebemos, o ar que respiramos, o alimento que a terra e os outros seres vivos nos dão, sem a natureza, enfim.
Em todo caso, é bom este posicionamento e chamado do Papa Francisco. Com sua autoridade moral pode influir muito na criação de um espaço público de debate sério e consequente da crise ambiental e social que está nos destruindo. Uma boa nova, um bom anúncio, como as próprias igrejas costumam dizer. Uma boa nova é ele mesmo, o próprio Papa Francisco com seu espírito aberto às questões de nosso tempo. De meu ponto de vista, o apelo ético, baseado em valores, é o que pode enfrentar a fria racionalidade de um capitalismo utilitário – de ganhos privados, sem limites – e destrutivo com sua crença nas soluções tecnocientíficas, sem se importar com a justiça social e com a integridade do nosso grande bem comum, a natureza generosa com quem vivemos em simbiose.