Itamar Silva
Coordenador de projetos no Ibase
O início já está longe. Confrontos, mortes, chacinas, medo, insegurança, racismo, disputas de narrativas. No entanto, parece que houve um ponto de inflexão. Um ponto fora da curva da barbárie. É possível isso? Fora da curva da barbárie?! A realidade do Rio de Janeiro é tão peculiar que a cada novo acontecimento, interpretamos como o pior. A morte de Marielle Franco, mulher, negra, parlamentar, comprometida com a defesa dos Direitos Humanos de todas e de todos. Uma voz forte na denúncia das constantes violências cometidas pelo braço armado do Estado e a atuação igualmente violenta das milícias nas favelas do Rio. É executada no coração da cidade maravilhosa, juntamente com seu motorista, Anderson. Sem dúvida, um crime político. A repercussão correu mundo e as manifestações de cobrança no aceleramento na apuração do caso, apesar de todo empenho da sociedade civil, ainda não obtiveram resposta. O tempo de silêncio das investigações contrasta com o barulho dos tiros que continuam vitimando pessoas, em particular jovens, nas favelas do Rio. Uma operação da Polícia Militar deixa um morador morto, o Marechal, figura conhecida de muitos na Rocinha. Não estava armado. Não confrontou a Polícia, simplesmente estava no seu território, cultivando o existir e lutando pela sobrevivência cotidiana. Uma bala de fuzil lhe atravessou a vida e o matou. Na mesma operação, um policial militar que trocava tiros com os marginais foi alvejado e procurou abrigo atrás de uma geladeira deixada na calçada. Resgatado pelos colegas de farda e levado ao hospital, não resistiu e morreu. A vingança. Três dias depois, “homens do batalhão de choque realizavam patrulhamento na favela, nas primeiras horas da manhã do sábado quando foram atacados pelos bandidos e revidaram”, de acordo com o que foi dito por parte da imprensa. Segundo relato dos moradores, no entanto, os policiais chegaram atirando. O alvo era um aglomerado de gente, em sua maioria jovens que começavam a dispersar ao final de um baile funk. O saldo da operação: 8 mortos. 18,45,24,22,26,28,21,19 anos – todos homens. Média de idade: 25. A Polícia informou que todos eram traficantes. Com esse depoimento as mortes estão justificadas: fomos recebidos à bala. Todos eram envolvidos com o crime. A chave para fragilizar uma possível, futura, investigação de responsabilidades, estava dada. Uma parte dos moradores desta cidade se sentiu um pouco mais aliviada: menos oito bandidos. Do outro lado da cena, outros depoimentos tentam furar o cerco. São mães, pais, amigos que dizem: ele não era envolvido com o tráfico. Ele era dançarino, ganhou um cachê ontem e estava curtindo o baile. Agora, a luta dos familiares e amigos é para limpar a honra dos jovens mortos. Todos sabem que o mal já foi feito. Eles não voltarão, nunca mais. Mas é preciso tentar salvar-lhes a honra. Principalmente daqueles que viveram no Morro tanto tempo e sempre se esquivaram do mundo do crime, sempre se negaram a pegar em uma arma. Mas agora, mortos, carregam a acusação de marginais fortemente armados. Alguns acham que a saída é entregar-se a Jesus, talvez a Bíblia desvie uma provável bala perdida. Outros acham que a solução é sair da favela. Também há os que defendem que baile funk não é lugar de gente boa. “Melhor romaria faz quem em sua casa fica em paz”. Será? Quantos já morreram dentro dos seus lares, indo comprar pão, confundidos com a sombra de marginais, ou….. O problema é: quem carrega essa marca (pobre, preto, jovem que tenta ser livre), possui a estranha vulnerabilidade social da desigualdade produzida há séculos no Brasil. Mas não há tempo para dor. Pouco tempo depois, na mesma Rocinha, mais uma operação do Bope deixa um morto: “mais um criminoso”, diz o jornal. Se é mais um, ratifica a declaração da polícia de que os outros oito, mortos anteriormente, também eram. E dessa forma alimenta-se a ilusão de que o mal está sendo combatido. E, se por acaso houver inocentes entre os mortos, é acidente de percurso.