Cândido Grzybowski
Sociólogo, diretor do Ibase
Estranho momento este que estamos vivendo, com eleições municipais à nossa porta. Os desdobramentos da crise política nacional ainda produzem grandes contradições e fatos de impacto. Eduardo Cunha foi cassado de forma contundente, mesmo pelos que até ontem o tinham como líder máximo. Mas demorou demais para sair e fez muitos estragos na política. Logo em seguida, os procuradores do MPF da “lavajato” em entrevista coletiva, em Curitiba, revelaram as suas hipóteses e motivações identificando em Lula o chefe supremo da “propinocracia”, mas esqueceram de mostrar as provas. Lula reagiu no dia seguinte transformando o fato em um discurso essencialmente político, de despertar a militância e aliados. Enquanto isto continua sombrio o horizonte da economia. Para celebrar, de fato, só os feitos memoráveis de nossos atletas paralímpicos, um exemplo de garra e humanidade.
Num quadro assim, como pensar as nossas cidades, os territórios comuns que compartimos no dia a dia? Quais são as propostas e os debates inspiradores? Por sinal, estão acontecendo debates? Ou é impressão minha que o atual processo eleitoral não despertou a cidadania? Aquelas inserções de propaganda eleitoral nas rádios e canais de televisão são ridículas. O que mais falta são ideias, visões e direções a dar para as nossas cidades. Em quem votar?
Para a cidadania, os territórios de vida e trabalho são determinantes do como a gente consegue ir levando. Aí nos organizamos para dar conta do essencial, as nossas relações afetivas, familiares e com amigos, as nossas festas, nossa identidade e cultura, o nosso modo de ocupar um lugar no mundo e poder realizar plenamente o direito de viver. Talvez nem pensássemos a respeito, mas é no território local, no nosso endereço na crosta da Terra, onde o convívio, o compartilhamento e o cuidado são valores e princípios que funcionam como infraestrutura humana indispensável da vida em comum. Claro que isto implica em zelar pela cidade, pelas ligações e conexões que dão concretude ao estar vivendo o território e no território como um comum. É pensando as cidades – cada cidade, a nossa cidade – como comuns é que a gente vê a importância de todo mundo propor e se engajar ativamente como cidadania. Esta é uma condição para que a cidade como um comum seja cuidada por todas e todos, seja espaço de convivência e compartilhamento entre todo mundo que vive tal comum. Só assim ele pode ser gerido como um bem comum único de todas e todos, sem discriminações, desigualdades ou segregações, como território concreto de direitos de cidadania em permanente expansão.
Não é este o sentido que domina o processo eleitoral municipal. Não me sinto motivado como cidadão a participar de um processo virtuoso de discussão sobre a nossa cidade. Claro, a conjuntura geral tem sido estressante até aqui e nos deixa apreensivos sobre o amanhã. Ter ou não ter trabalho e renda, contar ou não com os direitos à seguridade social, educação de qualidade para os filhos e saúde, entre tantas outras, são ameaças fundamentais e reais para a maioria de cidadãs e cidadão do Brasil. Em grande parte, propostas e políticas eficazes para enfrentar tais questões de fundo extrapolam os processos concretos que podem e devem ser geridos ao nível de nossas cidades. O modo de organizar e dirigir a economia do país depende muito mais do poder central, que define leis, políticas e aloca recursos. E os sinais que estão sendo dados pelo ilegítimo Governo Temer vai no sentido de priorizar rentistas e grandes investidores privados, mesmo à custa de direitos e da própria democracia.
Porém, muita coisa do que constitui nossa vida no cotidiano acontece aqui e agora, no nosso território, na nossa cidade. Afinal, vivemos numa cidade, como o Rio, segregada territorialmente entre asfalto e favela, entre zonas ricas que abocanham grande parte dos recursos públicos e de todos os comuns naturais e criados, e zonas populares deixadas ao léu, desprovidas de muitas condições definidoras da qualidade de vida cidadã, mas, ao mesmo tempo, o real berço de nossa vibrante identidade e cultura como cariocas. Tal segregação é racial e de classe: numa parte da cidade, população negra e pobre, mas que carrega o peso do trabalho mais duro para que tenhamos uma cidade; na outra parte, população branca e rica, de classe média e dos “donos”. Aí que entra o mal estar com o processo eleitoral concreto, ao menos aqui no Rio de Janeiro. Tal questão praticamente está ausente da disputa eleitoral, como se não fosse a cidade que está em questão. A escolha eleitoral está entre quem vai fazer isto ou aquilo e quem é mais capaz. Nada, absolutamente nada, sobre o problema estrutural de fundo, mais uma vez deixado de lado como se não fosse nosso problema que cerceia o comum e limita o potencial deste nosso Rio de Janeiro como cidade mais humana, mais carioca, mais alegre e ainda mais maravilhosa.
Enfim, posso estar desconectado ou já um tanto sem capacidade de ver e ouvir. O certo é que nada vi ou ouvi até agora sobre a cidade do Rio como um sonho bom que poderá ser real com propostas de um imaginário mobilizador e de um caminho a ser feito para chegar lá, a partir do aqui e agora. A crise não é desculpa. As obras do Prefeito Paes para tornar o Rio uma cidade olímpica e, sobretudo, atraente para negócios globais, não podem nos ofuscar. Somos hoje uma cidade ainda mais segregada e dividida. Precisamos de um novo ideal mobilizador e de uma direção. Mas, sobretudo, precisamos de radicalidade democrática. Nada vai acontecer sem fortalecer o comum que nos une em torno à cidade, sem defesa e promoção de uma cultura democrática radical da participação, da liberdade, da igualdade na diversidade, da solidariedade entre todas e todos. Digam-me quem está neste caminho para poder dar o meu voto!
Rio de Janeiro, 17/09/16