por Lívia Duarte
ONG Fase
Dossiê organizado por diversos especialistas ligados ao Fórum Comunitário do Porto detalha em 46 páginas uma série de violações de direitos, especialmente à moradia, cometidas na região portuária do Rio de Janeiro. O “Relatório de Violações de Direitos e Reivindicações” foi entregue ao Ministério Público Federal antes da audiência realizada em 21 de junho. A audiência foi convocada para esclarecer sobre remoções e ameaças de despejos relacionados às obras para a Copa e as Olimpíadas. Na região central, o projeto Porto Maravilha, de “revitalização“ da área portuária, estaria entre os que prometem garantir “legados” dos jogos para a cidade. No entanto, os relatos de moradores mostram que hoje o projeto não traz esperança, mas desconfiança e medo.
A arquiteta e urbanista Rossana Brandão Tavares, técnica educadora da Fase que participou da elaboração do dossiê, conta que além deste documento os moradores levaram para apreciação do Ministério Público outras provas de que têm sido tratados à margem da lei. São exemplos vídeos, propostas de indenização e convocações de cadastro irregulares. Segundo ela, ainda não se sabe oficialmente a abrangência das atitudes que o MPF pode tomar diante das denúncias. No entanto, para a arquiteta, a audiência pública foi importante na medida em que abriu espaço para os moradores fazerem suas denúncias diante da Secretaria Municipal de Habitação e na presença do Ministério Público como mediador.
Ela relata que, na ocasião, o secretário municipal de habitação Jorge Bittar apresentou os investimentos que a prefeitura pretende fazer na região e demonstrou irritação ao ser interrompido por um dos moradores. O rapaz perguntou se os investimentos seriam feitos com o dinheiro que a prefeitura economiza com as indenizações. Interpelado, o secretário gritou “você sempre diz besteiras assim?”. O morador foi retirado da sala. O secretário chegou a dizer que os relatos dos moradores eram mentirosos, mas depois admitiu a possibilidade de arbitrariedades. Mas o destempero pode ter começado no início da audiência, quando o subprocurador geral de Justiça, Leonardo de Souza, que representou o MP Estadual, afirmou que a prática da SMH de marcar as casas ameaçadas de despejo com spray remontava ao que os nazistas faziam em relação às casas dos judeus.
De acordo com Rossana, um dos argumentos utilizados pelo secretário para explicar possíveis irregularidades é atuação inadequada das subprefeituras – o que exime de responsabilidade a Secretaria Municipal de Habitação. Diante disso, entre os encaminhamentos citados na audiência está a identificação da prática das subprefeituras. Outro encaminhamento é a identificação das famílias atingidas ou ameaçadas pelos despejos para que o MPF possa atuar mais diretamente.
O relatório
Para os autores, falta “vontade política” para resolver os problemas em curso na Zona Portuária do Rio de Janeiro, já que há leis e regulamentos que reconhecem a função social das propriedades e o direito à moradia digna. Eles analisam que as situações mais graves e urgentes são relativas ao Morro da Providência e às ocupações com os endereços 182, 184, 186, 207, 209, 211 da Rua do Livramento, bem como à ocupação Machado de Assis, na mesma rua. Apesar dos casos serem distintos, um problema comum é a falta de informações. Os moradores não sabem o motivo de sua possível saída, os responsáveis, os prazos e o futuro da comunidade.
São frequentes relatos de que os agentes da prefeitura não se identificam e informam de modo confuso. Muitas vezes, dizem que vão “cadastrar” os moradores e dias depois chegam preparados para destruir as casas. Também são comuns as marcações da Secretaria Municipal de Habitação (SMH) ao longo da região portuária, principalmente no Morro da Providência, mesmo que os moradores não saibam sobre o destino de suas casas. Os autores do relatório não conseguiram quantificar com precisão o número de remoções previstas, mas a partir das numerações pichadas puderam supor que entre 300 a 400 devem vir abaixo no Morro da Providência. Na Pedra Lisa, a própria SMH afirma que cerca de 300 residências são consideradas áreas de risco – o que justifica remoção.
O documento também denuncia que as quase 7 mil acomodações que serão construídas para as Olimpíadas na região estão fora do perfil geralmente praticado para habitação de interesse social. Não há previsão de moradias populares, e nenhuma das unidades foi destinada como legado social e urbano dos jogos, como prevê decreto de 2010. O fato indica a intenção de mudar a perfil dos moradores da região. Para quem pode ser removido é oferecido aluguel social ou apartamentos do programa Minha Casa, Minha Vida na Zona Oeste, em locais onde muitas vezes faltam serviços básicos adequados, como transporte. Entre as preocupações dos ameaçados está ficar longe do trabalho e de serviços públicos, como a escola dos filhos e hospitais, e também a perda de vínculo a comunidade, família, amigos.
Interesses privados
Na Rua do Livramento, o dossiê aponta que a ação da prefeitura tem sido favorável aos interesses particulares, mesmo nas casas e prédios com dívidas ativas onde os ocupantes poderiam ter garantido o direito de usucapião individual ou coletivo. Os autores denunciam que a SMH chega a usar “subterfúgios de cadastramento”: fazem o cadastro como se fosse para o Bolsa Família, inclusive de pessoas que não são casadas e não têm filhos. E ainda destacam que em nenhum dos documentos oficiais sobre mudanças produzidas na cidade os “cenários possíveis” mencionam a possibilidade de transformar terrenos e imóveis abandonados em moradia popular, justificando ainda mais a preocupação dos moradores de ocupações.
O dossiê lembra ainda que em São Paulo há jurisprudência quando o assunto é prevalência da posse com função social, caso em que se encontram várias famílias da Rua do Livramento. Recorda ainda de exemplos exitosos de organização popular para a solução do acesso à moradia, inclusive incentivada pelo poder público. Em 1996, São Paulo, movimentos sem-teto foram incentivados e o Fórum da Cidadania dos Cortiços foi realizado com apoio estatal. Entretanto, lamentam os autores, “o que se observa na conjuntura atual do Rio de Janeiro é o incentivo à desmobilização e desarticulação dos moradores, através de negociações individuais e até mesmo ações ilegais”.