Cândido Grzybowski
Sociólogo, diretor do Ibase
Por mais que a gente tente, nesta época do ano tudo parece estar à espera. Quando o Carnaval passar, quem sabe, seremos obrigados a cair na real do momento de crise política e econômica em que estamos atolados. Apesar do calor intenso, momentos mais suaves precisam ter mais lugar no cotidiano da vida. Curtir lugares, as águas do mar e as praias, a beleza de nossa floresta em plena cidade, o Parque do Flamengo, os museus com seus espaços refrigerados, enfim não faltam opções para ir levando a vida de bem com o sol e o clima nesta nossa cidade. Enquanto deixamos de nos atormentar com a crise de hegemonia e a pequenez ética e política de muitos ditos representantes – a quem representam mesmo? -, é bom prestar atenção àquelas coisas fundamentais do cotidiano que nos dão o pleno sentido de viver.
Neste verão, estou redescobrindo o prazer de fazer a feira. Desde novembro de 2015, voltei sistematicamente a fazer minha feira de frutos e legumes para a semana – aqueles que não consigo produzir na Chácara – numa feira de rua. Caminho pela Rua do Catete, meu canto, até à Glória e sua fantástica feira. Que burburinho maravilhoso aquele que se forma numa quando ela está cheia de gente. Aí cada uma e cada um participam plenamente, como iguais, despido de postos, cargos e hierarquias, vestidos simplesmente como il faut para estar no meio de uma feira de rua arrastando carrinho, como mais um morador do entorno. É gente de verdade. A relação com os e as feirantes é de tu a tu, olho no olho, com um pequeno sorriso e muito bom humor. Logo, logo, na terceira ou quarta vez numa feira, a qualidade humana da relação que se cria acaba se destacando, até elegendo os nomes de feirantes e de compradores como singularidade e normalidade de uma relação que valoriza o lado pessoal, a satisfação, o bem viver. A gente até é convidado a provar o produto de desejo e quase sempre leva algo a mais do que o pesado ou contado. Isto não tem preço, mas é mercado de verdade!
O mercado vira coisa de gente, relação quase afetiva, sua origem histórica por sinal. Trata-se de trocar, de buscar o que é melhor para os dois lados da relação. Nada daquele enquadramento formal de supermercados, onde o supérfulo são as pessoas e o império é de produtos de origem ignorada, igualados pelos $$$. Piores que supermercados são os shoppings centers – outra invenção maluca dos tempos modernos, algo criado para fazer dinheiro e não para facilitar relações humanas no suprimento de nossas necessidades básicas. Bem, nem imagino o absurdo que é uma bolsa de valores. Vi, de uma janela interna do prédio, o recinto da Bolsa de Valores de São Paulo, onde o burburinho e o nervosismo dos operadores, decididamente, não o era da rua, o de uma feira. Espero não ter a infelicidade de um dia cair no meio daquilo lá e, pior, ser tragado pela lógica do templo do capital especulativo.
A origem dos mercados em praças públicas é como uma extensão da casa da gente, em que o cuidado prima sobre o dinheiro. O dinheiro tem lugar, é claro. Mas ele como convenção, como código legal e cidadão da relação coletiva que nos faz membros de uma grande comunidade, onde este papel vagabundo com figuras e números expressa valor trabalho. Aceita-se o papel dinheiro como normal, mas acima dele está gente que troca entre si valores junto com produtos. Nem importa, em primeiro lugar, saber se é mais caro ou mais barato, mas importa muito a relação e o produto em si, sua utilidade. Desde que voltei à feira de rua deixei de pensar somente ou principalmente no preço. A feira é o prazer de estar aí, de ver, ouvir e falar, de se divertir, de provar algo bom, de ver gente maravilhosa, de todas as cores e idades, de se sentir bem, enfim. De comprar e poder encher o carrinho, também, mas não antes e acima de tudo.
Bem, devo reconhecer que estou indo a uma feira especial, a da Glória, nos domingos pela manhã. Mas acho que qualquer feirinha dá um prazer essencial semelhante. Em Rio Bonito, território de minha chácara, onde passo cada vez mais tempo, acontece uma feira nos sábados de manhã, onde estive várias vezes. Tem basicamente produtos locais, muito poucos, por sinal, pois a agricultura da região virou pobre ao longo da história. Quando Darwin visitou Rio Bonito em sua viagem, aquilo era uma grande floresta de Mata Atlântica. Depois, foi degradando, com cana e café em base de trabalho escravo, lenha para as cozinhas da voraz Rio de Janeiro em expansão, banana, leite e boi no rastro da destruição florestal feita antes. Hoje, parece caminhar para algum tipo de regeneração florestal e, talvez, turismo rural, mais por falta de opções do que por algum estímulo. Pois bem, a feira dos sábados na ainda pequena Rio Bonito – o rio, por sinal, não poderia ser mais degradado, com o esgoto urbano não tratado jogado nele – é algo encantador em sua simplicidade. O básico da relação humana está aí, faltam produtos a serem vendidos e comprados. Mas resiste com cultutra e valor em si!
Voltando à Feira da Glória, quem não a conhece precisa conhecer. Há algo de puramente carioca acontecendo aí, sem espalhafatos. Afinal, feira é mercado e mercado vive se houver gente vendendo e gente comprando. Acho que na Feira de Glória o público é cativo e está aumentando. Virou point de turismo alternativo. A mistura é gostosa, uma amostra de nossa maravilhosa diversidade humana que nos conforma como cidadania carioca. Você passeia na avenida entre barracas que parecem não acabar. Quantas são? Mais de 50, como me disse um feirante, certamente! Umas 100? Estimei, conservadoramente, em mais de 150. Mas por que estou tentando contar? Talvez para passar a imagem de coisa grande, com muita gente. Que colorido fantástico! Aliás, feirantes sabem como ninguém dispor produtos de modo bonito, atraente. E como parece fantástica aquela provinha de uma fruta! Você está no meio de gente, muita gente, esbarrando com o seu carrinho, mas tudo num olhar cúmplice e sorridente. Se a gente não se cuidar, compra mais do que precisa para a semana. Mas até isto dá satisfação.
A feira é lugar de encontro de amigos e amigas que vivem no entorno. Gente que você guarda com carinho no coração, mas o dia a dia separa, acaba encontrando na feira, fazendo o mesmo que você, curtindo aquilo aí. Vi na Feira da Glória amigos próximos que não via há muito tempo. Pode a gente ter satisfação maior do que estar meio à toa e esbarrar com amigos? Pois, ir à feira é dar-se uma tal oportunidade. O papo pode não ser longo, mas é como botar as relações de amizade no centro, como sempre estão, mas muitas vezes lá no fundo, latentes. Defrontar-se com amigos de longa data, como já me aconteceu, é como fazer, simbolicamente, transplante de coração, regenera.
Mas a Feira da Glória tem o pastel do Rina. Que delícia de pastel! E aquele caldo de cana gelado, com limão, pode haver prazer maior? Pois é, a Feira da Glória conta com o Rina e seu batalhão de choque de vendedores simpáticos – preciso descobrir o nome deles e delas – para dar prazer para a gente. Até é divertido ver gringos se babando de prazer de provar aquela iguaria que só feiras livres têm. No livro que me deram sobre o grande chef francês, Bocuse – La Cuisine de Marché -, a feira é o berço da boa cozinha. Convido a fazer um passeio de domingo na Feira da Glória, para ver, curtir a vida e provar os pastéis com caldo de cana do Rina.
Que o bom de nosso cotidiano de cidadania, na cidade que é nosso bem comum vital, não seja deteriorado pela conjuntura política carregada! Cada domingo vira fantástico após a Feira da Glória. Acreditem em mim! O sentido político de tal cotidiano precisamos trazer ao centro de nossas vidas.