Hoje, 16 de outubro, é o Dia Mundial da Alimentação. A luta pelo fim da fome e a garantia da segurança alimentar faz parte da história do Ibase. Nesta data, reforçamos nosso compromisso com essa causa.
Reproduzimos aqui o artigo de Maria Emilia Pacheco, presidenta do Conselho Nacional de Soberania e Segurança Alimentar (Consea).
Políticas públicas para efetivar o Direito Humano à Alimentação Adequada[1]
Maria Emilia L. Pacheco [2]
A Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) escolheu um tema instigante para a comemoração do Dia Mundial da Alimentação neste 16 de outubro: Sistemas Alimentares Sustentáveis para a Segurança Alimentar e Nutrição. Vamos transformar este tema em convite à mudança, à mobilização das sociedades e governos pela garantia da alimentação como direito, como patrimônio cultural de um povo, e não como mercadoria. Um convite à defesa da soberania alimentar.
Para mudar a realidade das 850 milhões de pessoas que sofrem de desnutrição crônica no mundo será necessário mudar os modelos insustentáveis de desenvolvimento. Eles degradam o meio ambiente, perpetuam a concentração de terras, apoiam-se na expansão de monocultivos, na contaminação dos alimentos, e ameaçam os ecossistemas e a biodiversidade. Precisamos de sistemas diversificados sob a égide da sociobiodiversidade, com a garantia do acesso ao alimento de qualidade. A agroecologia tem mostrado que é possível.
No Brasil podemos enumerar várias conquistas de programas e políticas públicas que colaboraram para a melhoria de nossos índices de insegurança alimentar. Todos conhecem o Bolsa Familia e seus resultados, mas outras iniciativas ainda são bastante invisíveis para a maioria da sociedade. O Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e a Política Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) são exemplos significativos regidos pelo princípio do Direito Humano à Alimentação, inscrito em nossa Constituição. Ambos representam uma efetiva resposta política que faz avançar a democracia e a cidadania.
O PAA é uma proposta nascida no Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), em 2003. Representa o preenchimento de uma lacuna da política agrícola brasileira. Trata-se de uma ação estruturadora, dirigida à agricultura familiar produtora de alimentos, combinada com a provisão de alimentos aos grupos sociais diretamente afetados pelo risco da insegurança alimentar.
A garantia de preços à agricultura tem sido permanente na política agrícola brasileira. No caso da política cafeeira, por exemplo, com vigência há mais de um século, desde o Convênio de Taubaté de 1906. E, desde 1966, com a instituição da Política de Garantia de Preços Mínimos, através do instrumento da Aquisição do Governo Federal, é permitida a compra direta, sem licitação, da
produção de médio e grande porte.
O caráter inovador do Programa de Aquisição de Alimentos reside na resposta aos anseios da democracia e da cidadania, pois na busca por equidade trata os desiguais na medida de sua desigualdade. O art. 19 da Lei 10.696 de 2003, garantiu a base legal para que a aquisição de produtos oriundos da agricultura familiar também fosse possível com dispensa do procedimento licitatório. Portanto, o PAA criou as condições necessárias para os agricultores e agricultoras familiares participarem do mercado institucional.
As vozes dos 185 mil agricultores familiares e comunidades tradicionais que produzem centenas de variedades de alimentos; das 19.681 entidades da rede socioassitencial que os recebem nos municípios de todas as regiões do país e também as vozes não contabilizadas daqueles que se alimentam dos produtos do PAA clamam para que o programa seja entendido e valorizado em seus vários sentidos.
O Programa Nacional de Alimentação Escolar, de caráter universal, é outro exemplo de política pública que contribui positivamente para a construção de Sistemas Alimentares Sustentáveis. O Pnae atende a milhões de escolares no país, com a garantia de pelo menos 30% dos alimentos fornecidos pela agricultura familiar.
Recentemente a imprensa noticiou[3] o questionamento do governo americano junto à Organização Mundial de Comercio (OMC) a esse programa, que segundo eles, violaria regras internacionais por representarem uma estratégia de subsidío indireto à agricultura e aos produtores rurais.
Hoje, assim como tem feito nos últimos anos, o Consea repudia as medidas que possam afetar e restringir a capacidade do Estado de implementar suas políticas públicas regidas pelo principio do Direito Humano à Alimentação Adequada. O estabelecimento de cláusulas de resguardo horizontal nos acordos internacionais mostra-se fundamental para preservar integralmente a soberania do Estado brasileiro para que siga se consolidando e avançando numa estratégia de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional.
Se quisermos “sistemas alimentares sustentáveis” como uma realidade no mundo e no Brasil, precisamos dar continuidade e ampliar programas como o PAA e PNAE.
Pensando ainda em outras políticas capazes de garantir a existência e a multiplicação de sistemas alimentares sustentáveis, saudamos a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica. Afinal, a Agroecologia é capaz de conduzir mudanças sustentáveis nos sistemas agroalimentares, reconhecendo os saberes e direitos dos camponeses no acesso e cuidado dos bens da natureza.
Mas ainda permanecem enormes desafios. Precisamos da implementação de um Plano Nacional de Redução do Uso dos Agrotóxicos para a garantia de uma alimentação adequada e saudável; frear a liberação dos transgênicos; condenar a proposta em debate no Congresso Nacional de produção e comercialização de sementes transgênicas suicidas, ou seja, sementes conhecidas como TERMINATOR, que após a colheita não voltam a germinar, obrigando os agricultores a comprar sementes a cada safra. Diante do aumento crescente e preocupante da obesidade, precisamos da efetivação do Plano de Prevenção da Obesidade. E também intensificar a articulação pela regulação da publicidade de alimentos e instrumentos de rotulagem.
Porém, como afirmou o patrono do Consea, Josué de Castro, “nenhum fator é mais negativo para a situação de abastecimento alimentar do país do que a sua estrutura agrária com um regime inadequado de propriedade, com relações de trabalho socialmente superadas e com a não utilização da riqueza potencial dos solos.” As palavras da obra Geografia da Fome, 40 anos depois da morte do autor que aqui homenageamos, soam completamente atuais.
A existência de sistemas alimentares sustentáveis e a superação da histórica desigualdade que ainda existe em nosso país clamam pela garantia dos direitos territoriais e patrimoniais para povos indígenas e comunidades tradicionais e a democratização do acesso à terra, com a reforma agrária.
Continuemos com determinação nossos caminhos na defesa da Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional e do Direito Humano à Alimentação em busca de um mundo mais justo e sustentável.
[1] Este artigo é uma adaptação da declaração da autora na Abertura das comemorações do Dia Mundial da Alimentação, em solenidade organizada pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), em conjunto com o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), o Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea) e o Programa Cozinha Brasil em 1º de outubro de 2013. Saiba mais: http://www.mda.gov.br/portal/noticias/item?item_id=14574124
[2] Presidenta do Conselho Nacional de Soberania e Segurança Alimentar (Consea). Assessora do Programa Nacional de Agroecologia, Soberania Alimentar e Economia Solidária da FASE – Solidariedade e Educação.[3] O Estado de S. Paulo. 27 de setembro de 2013. Cf. http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,eua-questionam-isencoes-e-acoes-de-programas-sociais-brasileiros-,1079321,0.htm