Cândido Grzybowski
Sociólogo, presidente do Ibase
A onda de calor que nos sufoca é, sem dúvida, um fenômeno climático típico de verão. Mas este, pelas médias históricas, como já é de conhecimento público, está bem acima do normal. O pior é que além do calor imediato, quem acompanha o debate científico em torno à mudança climática tem a cabeça fervendo nestes dias de péssimas notícias. Enquanto aqui no Brasil estávamos em plena disputa do segundo turno eleitoral, o Painel Internacional das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (IPCC, em inglês) divulgou um contundente estudo sobre os riscos de total descontrole climático se a temperatura média subir mais de 1,5°C acima do patamar da era pré-industrial. Apesar disto, a COP-24, em Katowice, Polônia, em dezembro último, não passou de um pobre acordo político de intenções mais do que engajamento efetivo na redução das emissões. Não deixa de ser uma grande ironia na conjuntura mundial que a COP, tendo no centro o mandato de enfrentar a descarbonização da economia e das sociedades, tenha acontecido no coração da indústria do carvão da Polônia. Pior seria ter acontecido nos EUA com o líder da maior economia mundial negando que o clima seja uma ameaça, apesar de estar lidando com a intensificação do número e tamanho dos ciclones, o registro de temperaturas particularmente extremas (inverno e verão) e com os devastadores incêndios.
Para nós brasileiros, a mudança climática já é dor de cabeça com febre e tudo. Logo após a vitória eleitoral, antes até de ser governo, Bolsonaro anunciou não queria sediar a COP-25, neste ano de 2019. Agora, já empossado, está tornando realidade a decisão de desligamento dos acordos climáticos e se alinhando com Trump e outros negacionistas da mudança climática, como se tal questão fosse de esquerda. Chega ser motivo de piada o que o nosso novo chanceler diz sobre o assunto. Como bem afirma Angelika Humbert, do Alfred Wegener Institut, da Alemanha, estudiosa do derretimento das calotas polares, “el cambio climático se puede medir, no se trata de creer o no creer”.
O pior já está acontecendo no Brasil. Começou a montagem de uma operação interna de desmanche do conjunto da institucionalidade e das políticas de proteção dos comuns, da biodiversidade, florestas e água, dos territórios indígenas, quilombolas, extrativistas. Tudo agora é uma questão de exploração, a mais rápida e intensa possível, da “riqueza” natural pelo extrativismo mineral e pelo agronegócio do boi e da soja e seus grileiros de terras e motosserras desmatadoras, com violência e morte do que se encontra no caminho. FUNAI e demarcação de terras, Reforma Agrária, licenciamento ambiental e muito mais de uma possível proteção da natureza estão na órbita do Ministério da Agricultura e da bancada ruralista. É como mandar a raposa cuidar do galinheiro.
Algo que se tenta separar, mas está intrinsecamente ligado, é toda a questão social com a questão ecológica. Não estranha em nada o fato que o mesmo desmanche da proteção ecológica seja praticado na questão dos direitos humanos, dos direitos trabalhistas e da educação, do combate à desigualdade social e pobreza, do enfrentamento ao racismo, ao machismo e à violência contra as mulheres. Estamos diante de uma ameaça de destruição ecossocial em nome de um agressivo, selvagem e reacionário desenvolvimento a ser regulado pela barbárie do livre mercado, entre não livres e nem iguais como importa frisar.
Comecei esta minha crônica com a intenção de pensar na ameaça maior e irreversível que a mudança climática anuncia, assim como um termômetro sinaliza a febre que pode matar. Aqui estou falando da humanidade como uma espécie viva que comparte a biosfera do planeta Terra e que dela depende. Nós, os humanos, já extinguimos uma grande parte da biodiversidade natural. Aqui no Brasil, nenhum dos biomas constitutivos do imenso território que nos cabe cuidar mantem a sua integridade de modo a se reproduzir. No andar de nossos jatos e foguetes (já não usamos carruagens, quando se cunhou a expressão), caminhamos para o desconhecido e, segundo os cientistas, ao irreversível em termos de biodinâmica, sobrando pouca de esperança de vida digna para a grande maioria das gerações futuras, tendo que viver sob a ameaça da extinção. A verdade é dura, mas precisa ser dita. O capitalismo extrativista, produtivista, consumista, controlado pelas grandes corporações financeiras globalizadas, é o motor da promoção de um futuro muito próximo – já está sendo proposto concretamente – de fortalezas e muralhas militarizadas, com muita barbárie e apenas um planeta destruído para uma parcela mínima da humanidade. Meus leitores vão concordar que se é assim o futuro próximo, a cabeça precisa ferver muito na busca de alternativas neste escaldante verão.
Como ativista da palavra, intelectualizado por ofício, é meu dever socializar estudos e artigos a que tenho acesso e leio. Resumo aqui um importante texto preparado pelo amigo e cúmplice nas articulações por movimentos de cidadania de dimensões planetárias, Roberto Savio, argentino-italiano, fundador do Inter Press Service (IPS) e hoje presidente de Other News , um serviço que o mercado não propicia. Ele, como eu, tenta criar consciência, muito além do simples entender o que se passa. Savio começa lembrando que na política os interesses imediatos, particularmente de acumulação de riqueza e poder político, estão acima de valores éticos e visão ecossocial e radicalmente democrática para o futuro. Apesar de transformada em questão mística para grandes massas, a mudança climática é efetivamente uma questão de interesses imediatos, do ganhar e acumular o máximo possível, o quanto antes se possível, não importando quanto de violência, a morte, a destruição é necessária.
O que espanta é o verdadeiro bloqueio na opinião pública que sofre a questão da mudança climática como algo que pode ser irreversível para a humanidade e a biosfera. Ela é discutida seriamente nos meios especializados, mas mal disputada como questão ética, filosófica, científica, política e econômica. O fato é que há um acordo mais do que majoritário entre cientistas de que as atividades humanas provocam a mudança climática. A oposição a isto é fundamentalmente financiada pela indústria extrativista do carvão e do petróleo, com o exemplo maior dos irmãos Koch, dos EUA. Aliás, no mundo todo, ao invés de combater a mudança climática, que tem uma das causas fundamentais no uso de combustíveis fósseis, subsidiamos o extrativismo de carvão, gás e petróleo. Pelos dados da ONU, segundo Roberto Savio, o montante poder ser entre US$ 775 bilhões a US$ 1 trilhão. Mas se considerarmos o uso do solo, água e as externalidades (nunca contabilizadas), os subsídios podem chegar a mais de US$ 5 trilhões anuais, cerca de 6,5% do PIB mundial.
Outro dado que destaco do artigo de Savio é sobre uma pesquisa da ONU, de 2015, com uma amostra de 9,7 milhões de pessoas no mundo, sobre seis temas considerados prioritários entre 16 apontados. Os temas sociais – educação em primeiro, saúde e melhores oportunidades de trabalho – foram os eleitos. O último dos 16 temas propostos, no geral, foi a “mudança climática”, até mesmo nos países mais pobres. Nem nos países ilhas, os mais ameaçados pela mudança, o clima veio em primeiro lugar. Conclusão: a mudança climática é ainda uma não questão hegemônica no seio da sociedade civil planetária. Pior, ainda estamos longe de associar direitos humanos e direitos da natureza como os dois lados de um mesmo drama. Não é possível fazer justiça social destruindo a natureza. O inverso também é impossível, pois estamos diante de uma questão ecossocial, de uma nova relação entre nós e a natureza. Somos natureza viva e consciente dependentes da natureza que nós dá, na troca que fazemos com ela, o essencial para viver. A humanidade, com a ciência e tecnologia, se tornou uma força ecossocial. Temos que rever profundamente nossas filosofias, conceitos e, particularmente, a relação de domínio e destruição da natureza junta com a dominação de uns sobre outros seres humanos.
Termino aqui esta minha crônica alarmista. Lembro, porém, que não se trata somente de uma questão da destruição ecossocial que temos diante de nós. Pelo que está acontecendo, ou estamos sendo privados de informação por interesses que nos dominam, ou evitamos olhar mesmo sabendo, ou, ainda, teimamos em ignorar e até agir no sentido de evitar mais destruição. Independentemente deste ou daquele governo, temos um desafio de humanidade pela frente. Se não agirmos agora, será tarde para a vida e o planeta Terra. A integridade ecossocial da natureza é um direito fundamental de futuras gerações. Esta sim é uma questão de vida ou morte. Será que ainda podemos ser solidários quanto a nossos filhos e netos e seus filhos e netos?
Rio, 14/01/2019