Rio de Janeiro, 2/07/2014
Desigualdade social e democracia
Por Cândido Gzybowski
Sociólogo e diretor do Ibase
Nestes tempos de Copa do Mundo, com muitos jogos e emoções, é até difícil praticar a análise política. Mesmo com o ciclo de convenções partidárias, que nossa legislação e o calendário eleitoral impõem, toda a atenção é dominada pela Copa. Talvez uma análise inspirada no segredo da disputa num jogo de futebol seja uma possibilidade. A começar, no futebol dominam regras simples, bem conhecidas dos jogadores e treinadores, o que torna a disputa algo tendente ao mais leal e respeitoso, onde vale o mérito demonstrado na habilidade com a bola. Nem origem étnica, classe social, passado de conquistas no campo ou qualquer vantagem prévia contam na hora decisiva do jogo. Cada jogo é um jogo, bonito e emocionante na medida de sua imprevisibilidade sobre time ganhador antes do jogo. Existem violações e agressões que cabe aos juízes – única autoridade aceita em campo – punir com cobrança de faltas, advertências e expulsões, no ato mesmo. A disputa política é mais batalha do que jogo, onde a violação de leis e normas parece regra e não exceção. Na disputa eleitoral, por exemplo, tudo parece valer. Na disputa política no Parlamento, mais do que ideias e projetos, votam-se trocas de favores e benefícios, ou defesa de interesses corporativos e até invisíveis vantagens para financiadores de campanhas, ao invés do bem comum público, sua razão democrática de ser. Tal realidade da disputa política está longe de ser uma especificidade brasileira.
Por que é tão pouco democrática a disputa política nas democracias reais? Parece uma lei férrea da política o fato da gente comum, da cidadania enfim, lutar e lutar muito para conquistar democracias – como nós, desde mais de três décadas atrás, ou nossos vizinhos da América do Sul, ou ainda a África do Sul liderada por Mandela, ou a recentíssima Primavera Árabe, ou ainda Portugal, Espanha e Grécia na Europa – e estas acabarem usurpadas, ritualizadas, de baixíssima intensidade nos seus propósitos, como que reapropriadas pelos donos do poder… de sempre. Falar de outros é sempre mais fácil. O que chama a atenção na União Europeia desde a crise, como uma espécie de inevitabilidade lógica, é a desconstrução democrática expressa no desmonte do Estado de Bem Estar Social, com perda do poder da cidadania em favor, em última análise, de bancos detentores dos títulos da dívida pública e agências de pontuação de risco dos países. Na Europa do Leste, após a derrocada da URSS e dos países comunistas satélites, nos anos 90 do século XX, parece com os antigos aparatos de poder voltaram com nova cara nas democracias pouco democráticas.
Talvez cabe aqui lembrar o segredo da democracia. Democracia não é exatamente um projeto previamente definido, uma espécie de antevisão do resultado. Nisto se assemelharia com a disputa em campo. Trata-se, como propósito, de um modo de fazer a disputa de poder na sociedade, o que torna a democracia um método de transformação evolutiva e de conquistas de direitos igualitários num processo, sem discriminações de qualquer espécie, mas onde o melhor para todos seja o resultado. Seu princípio central é a primazia da cidadania, aquela fórmula clássica de que “todo poder emana do povo”. Que jogue o povão e que decida! Será assim mesmo? Bem, deveria ser, ao menos as diferentes constituições democráticas tem isto como leis pétreas. Mas que medo tem os donos do poder – para lembrar o grande Raimundo Faoro – de qualquer avanço na participação cidadã! A Copa tirou dos jornais entre nós, ao menos conjunturalmente, a questão do decreto lei sobre sistema de participação social, que tanto fúria vem despertando entre a elite incapaz de admitir compartir poder.
Democracia para valer tem a questão de compartir o poder na sua essência. Não se trata de eliminar quem quer que seja de antemão, conservador, progressista, centrista ou nada disto e tudo ao mesmo tempo. Nem de barrar nenhum cidadão ou cidadã do acesso à disputa democrática, único poder legítimo, instituinte e constituinte. Só que nenhum grupo, nenhuma classe, ninguém, enfim, pode negar cidadania a outros. O próprio direito de cidadania é um patrimônio comum. Ou seja, a democracia funciona se iguala as condições de disputa entre todos. Aliás, sua mágica – como no futebol – seria igualar pela política o que relações, processos e estruturas econômicas e sociais desigualam na realidade histórica.
Aí chegamos ao título desta crônica. Apesar do simbolismo do futebol ao longo dela, o que viso salientar mesmo é câncer que corrói as democracias, impedindo que elas avançam no que se propõem: construir sociedades plenamente democráticas. Claro, no começo da disputa, a igualdade é apenas um estatuto político. Mas se como resultado não se implanta mais e mais igualdade nas relações, processos e estruturas econômicas, sociais e culturais, tendo como referências direitos iguais para todos, o próprio processo democrático perde capacidade. Caminhamos para situações problemáticas, de democracias mais formais do que reais, de baixa intensidade pois privatizadas ou acaparadas por determinados poderes invisíveis, incapazes de enfrentar o câncer letal da desigualdade social.
Escrevo isto inspirado no recente debate que vem provocando o fantástico estudo histórico de Thomas Piketty, O Capital no Século XXI, ainda não disponível em português. Estudando a desigualdade social ao longo de um grande período histórico, em um conjunto de países considerados os mais desenvolvidos, Piketty põem em questão a própria ciência econômica dominante. Mas o que interessa aqui é lembrar a sua tese central: como se gera e cresce a desigualdade de riqueza nas sociedades capitalistas. A tese de fazer crescer o bolo para distribuir, deixando o mercado fazer isto, é uma falsidade, segundo o autor, demonstrada com fantástico banco de dados históricos. Pior – e isto vale em particular para a gente, onde até ministro fala em queda da desigualdade –, por mais mérito ético que tenham as políticas sociais compensatórias, permitindo um acesso mínimo a bens, elas podem ajudar a nivelar um pouco as rendas, mas em nada afetam a desigualdade acumulada. Piketty afirma que, pelo contrário, a riqueza nas mãos dos detentores de capitais – patrimônios que rendem, enfim – tende a crescer duas a três vezes o crescimento da economia como um todo. Olhando para nós, no Brasil, a nossa desigualdade de riqueza se reflete entre as mais ou menos 20 mil famílias detentoras de mais de 70% da dívida pública, que lhes rende algo em torno de 300 bilhões de reais ano, comparada às 13 milhões de famílias que recebem, do Bolsa Família, algo menor de 25 bilhões de reais ano (que ninguém me cobre precisão nestes dados, pois, como Betinho me ensinou, penso no escândalo da ordem de grandeza da diferença e não na exatidão dos números). Ou, então, os bilhões de reais de crédito subsidiado e benefícios fiscais para empresas, em relação a nossa estrutura regressiva de tributos, onde proporcionalmente pobre paga mais. Temos uma perversa realidade de cobrar de pobres para distribuir aos ricos, basta ver a história real de nosso poder.
Bem, não vou me alongar nos dados. Como logo que a Copa terminar vamos cair em cheio na realidade da nossa disputa política, com eleições de presidente, governadores, 1/3 dos senadores e todos os deputados federais e estaduais, parece que estamos dando chance à democracia de mostrar a sua força transformadora. Mas o que é mesmo que candidatas (poucas, é verdade) e candidatos tem a dizer sobre o inadiável enfrentamento da desigualdade estrutural que cresce entre nós? Desigualdade esta que se reveste claramente, hoje, de características combinadas de injustiça socioambiental. Ou reinventamos logo uma onda democratizadora poderosa, fundada em direitos de igualdade e busca de sustentabilidade social e ambiental, ou a própria democracia morre. Mas como fazer valer a igualdade política da cidadania com financiamento de empresas que desigualam a disputa eleitoral? Como tornar o debate de propostas e caminhos a trilhar para garantir direitos mais igualitários para todos no cotidiano da vida, com segurança sem violência, saúde e educação de qualidade, transporte que facilite a mobilidade mais do que os lucros dos empresários que o controlam, saneamento básico? Será que com esta barafunda de alianças partidárias sem claro interesse público iremos a algum lugar? Tomo o já constado desânimo da cidadania como um sintoma de nossa democracia doente, incapaz de avançar no enfrentamento da histórica e crescente desigualdade social entre nós.