Cândido Grzybowski
Sociólogo, diretor do Ibase
A grande mudança na conjuntura política, combinada com uma monumental crise econômica, marca o fim de um ciclo democrático no Brasil, iniciado nos anos 80 do século passado. Os processos em curso apontam com certa radicalidade para a imposição ao país de uma agenda de revisão constitucional e legal de direitos conquistados e de priorização de políticas favoráveis aos interesses econômico-financeiros, especialmente de rentistas. A própria institucionalidade democrática está em risco após o golpe do impeachment. Enfim, estamos diante de novos desafios, que exigem muito esforço analítico, firmeza na reafirmação de valores e princípios éticos democráticos, novo imaginário mobilizador, visão estratégica, ousadia e determinação de vontades coletivas nas iniciativas de ação cidadã. O pior é que, além disto, com maior ou menor intensidade, enfrentamos situações locais de acirramento de tensões e descontrole, devido à quase falência de Estados e municípios.
A dificuldade da tarefa de verdadeira reconstrução democrática que devemos começar desde aqui e agora se complica muitíssimo tendo presente a realidade que nos cerca na região e no mundo todo. Estamos mergulhados num contexto mundial de desgoverno, que também aponta para grandes retrocessos e impasses democráticos, com claros sinais de barbárie pipocando por toda parte. Trata-se de uma nova era de incertezas, onde está difícil prever o que pode acontecer. O desmantelamento atinge os movimentos sociais e organizações da sociedade civil. A emergência de movimentos de cidadania com dimensões planetárias, diante da maior interdependência gerada pela globalização e a maior consciência da comum humanidade na diversidade de povos, bem como das ameaças à integridade do planeta que compartimos, não consegue se concretizar com a força necessária para fazer face ao domínio dos mercados e das corporações.
Mas não dá para desanimar. O pipocar de resistências pelo país inteiro é animador, porém insuficiente para gestar uma nova onda de democratização. Insisto no que tenho afirmado em diferentes crônicas: precisamos de pensamento estratégico capaz de alimentar um debate criador de imaginários mobilizadores e de movimentos irresistíveis. Limito-me a pensar no papel das organizações de cidadania ativa do campo em que o Ibase se situa. Lembro que somos um conjunto bastante heterogêneo de pequenas organizações, mas que compartimos os mesmos princípios e valores democráticos e um engajamento solidário pela causa comum dos direitos de cidadania para todas e todos, com igualdade na diversidade, com participação pela justiça social e ambiental, sem discriminações de nenhuma espécie. Incidimos no debate público e nas políticas, alimentando a cultura democrática de direitos e imaginários sociais mobilizadores da cidadania.
Entre os muitos desafios que temos na atual conjuntura, listo alguns que me parecem incontornáveis. Começo apontando que precisamos repriorizar a questão democrática em si, como valor e base comum para a conquista de direitos e de políticas que os garantam, bem como para as necessárias transformações no poder e na economia. A democracia e a política foram desmoralizadas pelo golpe e o ilegítimo Governo Temer, pelo Congresso dominado pelas bancadas corporativistas e patrimonialistas e pelo Judiciário, que tenta impor a sua própria agenda nada democrática. Resgatar a democracia e a política democrática passa pelo fortalecimento estratégico da cidadania ativa e isto é condição essencial para que avancemos num novo modo de fazer política, que renove a democracia brasileira debaixo para cima. A reforma política e eleitoral só será substantiva pela via da cidadania ativa, sua ação em movimentos e seu voto consciente e determinado.
Tal desafio necessariamente aponta outro: nós mesmos precisamos nos reinventar como organizações de cidadania ativa. O esgotamento da onda de democratização, que vem dos 80, num certo sentido significa nosso próprio esgotamento, pois foi nela que nos afirmamos como um campo de organizações públicas e autônomas, não governamentais e nem privadas, mas de sociedade civil, a serviço da cidadania e da democracia. Temos uma história e muitos aprendizados acumulados, mas isto é insuficiente para os novos desafios. Como ser e agir autonomamente e contribuir para uma nova e irresistível onda de democratização, sonhar e afirmar que o aparentemente impossível pode ser possível, num contexto de tamanha adversidade? Como incidir no debate público e alimentar tanto imaginários mobilizadores como a cultura democrática de direitos e responsabilidades da cidadania? Com quem nos articular e aliar e que causas cidadãs abraçar? Sem dúvida, vamos precisar ser vigilantes e denunciar todas as iniciativas antidemocráticas, contra os bens comuns e negadoras de direitos. Mas com que iniciativas, com que estratégias de comunicação e ação?
Um grande desafio é elaborar questões emergentes das lutas sociais e ambientais nos territórios e transformá-las em questões de agenda pública democrática, de toda a cidadania. O Ibase, em particular, acumulou experiências de animar campanhas públicas de cidadania, que permitiram engajamento amplo e impactaram em políticas. Que campanhas seriam capazes de combinar estrategicamente as questões de lutas contra as desigualdades e as exclusões sociais com as lutas contra a destruição dos comuns nos territórios como questões de democracia e de toda a cidadania? Resgatar e trazer ao centro os comuns naturais e produzidos tem poder de renovar a cidadania e a própria democracia. Os indicadores como instrumentos de emergência e fortalecimento da cidadania nos territórios podem contribuir para tanto?
Limito-me a estes desafios como ponto de partida, mas sabendo que há muitos outros. De meu ponto de vista, porém, se não começarmos por nós mesmos corremos o risco de nos tornar irrelevantes. Precisamos ousar e renovar culturas institucionais e bases de existência que já se esgotaram e não servem mais. Os riscos são grandes, mas com determinação poderemos aprender até com os erros e possíveis fracassos. Precisamos preservar nossa capacidade de provocar corações e mentes dos poderosos, sempre solidários com desigualdades e exclusões, com intransigência na denúncia de violações de direitos e com todo tipo de discriminação, com o viver no lixo em meio à abundância do luxo, com a privatização e a destruição dos bens comuns da vida de todo mundo.
Rio, 05/12/16