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Democracia em disputa: por que ainda precisamos defendê-la todos os dias

por Sandra Jouan, diretora executiva do Ibase

A construção da democracia no Brasil sempre foi marcada por avanços e retrocessos, compondo uma trajetória de redemocratização que segue em curso. Essa caminhada árdua é fruto de disputas políticas permanentes no interior da sociedade.

Historicamente, nosso país convive com uma instabilidade democrática alimentada pela concentração de poder nas elites e pela manipulação de informações que distorcem a participação popular. Exemplos claros desse processo foram a interrupção do regime democrático no Estado Novo (1937-1945) e na Ditadura Militar (1964-1984).

Hoje, a maioria da população brasileira ainda não se sente plenamente contemplada pelos direitos que a democracia deveria garantir. Muitos deles — como o direito à vida, à demarcação de terras indígenas, ao respeito à diversidade e à representação política — reafirmados na Constituição de 1988, permanecem em disputa. Uma democracia efetiva exige a participação ativa de toda a sociedade, sobretudo dos grupos historicamente excluídos.

A história recente confirma essa realidade. No início de 2023, o Brasil sofreu uma tentativa de golpe de Estado, com ataques físicos às sedes dos três poderes, em clara ofensiva contra o governo recém-eleito de Luiz Inácio Lula da Silva, as instituições e a decisão popular. Dois anos depois, a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) condenou sete réus, entre eles o ex-presidente Jair Bolsonaro e ministros militares, por crimes como tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, participação em organização criminosa armada, dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado. Foi um momento difícil, mas que reforçou a prevalência dos valores democráticos e a necessidade de constante vigilância e aperfeiçoamento da democracia.

As investigações conduzidas pelo STF reuniram provas robustas e transparentes de que havia uma organização articulada para impedir o funcionamento das instituições, negar a alternância de poder conquistada pelo voto popular e atacar frontalmente o regime constitucional fruto de décadas de luta do povo brasileiro.

O cenário atual, contudo, revela que os ataques às instituições democráticas não se limitam ao episódio de 2023. Eles se manifestam de forma sistemática em mudanças geopolíticas globais, no fortalecimento de governos de ultradireita, na intolerância, no negacionismo contra vacinas, universidades e políticas sociais, e no uso da desinformação como arma política. Nesse contexto, as big techs desempenham papel ambíguo: embora aleguem combater fake news, não o fazem de maneira efetiva.

No Brasil, convivemos com um Legislativo frequentemente capturado por interesses corporativos, quando deveria estar comprometido com o bem coletivo. Não é por acaso que figuras como o deputado federal Eduardo Bolsonaro articulam, a partir dos Estados Unidos, ataques contra ministros do STF e contra a economia nacional. Ao mesmo tempo, mesmo após a comprovação da tentativa de golpe, o Congresso aprovou alterações na Lei da Ficha Limpa — conquista histórica da participação popular — abrindo brechas para deixar impunes políticos antes mesmo de serem julgados. Soma-se a isso a destinação de emendas parlamentares guiada por critérios políticos, que privilegia prefeituras alinhadas a determinadas bases, em detrimento de transparência e de critérios técnicos claros.

A atual denúncia envolvendo fundos de investimento e empresas financeiras da Avenida Faria Lima, usados para lavar e ocultar recursos ligados ao PCC, expõe ainda mais a interseção entre política, economia e crime organizado.

O Ibase tem sua história profundamente ligada à luta pela democracia. Os acontecimentos recentes reforçam que, por mais que se enraíze, ela precisa ser constantemente defendida. Enfrentar essa realidade exige compreender as mudanças em curso e se posicionar em defesa dos princípios democráticos, da cidadania ativa e da consolidação de redes de solidariedade locais e globais.

As pressões externas, somadas à extrema direita autoritária e a interesses corporativos, impõem enormes desafios à construção de uma cultura política democrática. O caminho possível passa pela mobilização social e pelo fortalecimento de agendas que priorizem soberania, direitos humanos e participação cidadã. Apesar de suas fragilidades, a democracia continua sendo essencial para garantir igualdade perante a lei, proteção dos direitos individuais e voz para o conjunto da sociedade brasileira.

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