Cândido Grzybowski
Sociólogo, diretor do Ibase
A crise capitalista, com intensidades e formas variadas, é mundial no seu impacto. As promessas da globalização estão ruindo como um castelo de cartas. Aliás, não há melhor imagem para definir o desastre que a do “cassino global”, de uma economia operando segundo a lógica da financeirização, que domina a vida real de povos inteiros. Talvez, o monumental desmonte de direitos e conquistas sociais na Europa de hoje, para atender às demandas do mercado financeiro e salvar bancos, seja o sinal mais revelador do que se tornou o sistema dominante. Mas isto é a ponta do iceberg da crise. A desregulação e o descontrole se revelam de modo particular na incapacidade de tal economia servir às necessidades básicas da maioria da população mundial. Este modelo de produção e consumo afeta a integridade dos sistemas ecológicos do próprio planeta.
A Conferência da ONU se define como de desenvolvimento sustentável, no entanto ela não visa enfrentar as contradições do sistema existente, e sim alimentar um novo surto de crescimento econômico-financeiro. ‘Business as usual’ é o que está sendo a referência com a tal economia verde. Rever as bases do insustentável modo de produzir e consumir dominante, além de profundamente injusto, não está na mesa de negociação. Pensa-se que o crescimento da economia capitalista será suficiente para erradicar a pobreza, sem diagnosticar que a causa da pobreza é exatamente a lei férrea de tais economias que tem como motor a imprescindível acumulação de capital. Não se trata de primeiro servir às necessidades humanas e nem de garantir a sustentabilidade da vida e do planeta. Trata-se de oportunidade e sustentabilidade para negócios crescentes, rentáveis. Desta vez é toda a natureza que se quer mercantilizar.
Contra isto tudo, puxada por vários movimentos sociais, organizações cidadãs e redes, cresce no seio de sociedades civis a consciência de princípios e valores que podem reorganizar a infraestrutura humana da economia e do poder para a sustentabilidade da vida e do planeta. Cuidar, conviver e compartir é, no cotidiano, o essencial para a vida humana. Deveria ser o central de qualquer economia para o bem viver. No entanto, nada mais distante disto do que o mercado e o valor mercantil como regulador da economia. Cuidar, conviver e compartir implicam atividades e práticas que não têm valor para uma economia mercantilizada, nada acrescentando ao tal PIB.
O cuidado pode ser tomado como fundante do viver bem. Trata-se de atividade do dia a dia, do viver humano. O movimento feminista nos lembra que sem o cuidado não existiriam bebês e crianças e a vida não se reproduziria. Aliás, sem carinho e amor, o que seria de nós? Sem as atividades de apoiar e olhar com carinho, vigiar, cozinhar e servir, limpar, enfim, sem a economia doméstica – totalmente fora dos cálculos do PIB – a própria vida humana não existiria. É neste espaço privado e não mercantil que se gesta o essencial do humano, realizado fundamentalmente pelas mulheres, que carregam o fardo da dupla jornada e da dominação machista. Estamos, sem dúvida, diante de uma das contradições mais reveladores do sistema econômico dominante: ele põe a vida de ponta cabeça, ao invés de servir à vida.
Além de desprivatizar as famílias e eliminar a dominação machista no seu interior e na sociedade como um todo, precisamos erigir o princípio do cuidar como central da nova economia. Devemos recorrer à etimologia da palavra economia, simbiose da vida humana com a natureza, a indispensável vida em comunidade, onde se convive e se compartilha tudo, organiza-se os territórios humanos como forma de viver segundo as potencialidades e limites do lugar que ocupamos. Cuidar é um imperativo ético para dentro do humano e da nossa relação com a natureza. Sem cuidado, a atmosfera foi colonizada pelas emissões de carbono das grandes corporações econômicas, dos mais ricos e poderosos, pelo consumismo do luxo crescente e do lixo. Sem cuidado, se fez a empreitada colonial de conquista de povos e seus territórios e, hoje, continua a disputa desenfreada, com guerras, se necessário, dos nossos recursos naturais. Sem cuidado – a Eco 92 adotou o princípio da precaução, sistematicamente desrespeitado até aqui –, estamos desenvolvendo sementes transgênicas e destruindo a biodiversidade ainda existente. Sem cuidado, estamos poluindo a água, ameaçando a vida nos oceanos, desmatando e criando desertos. A economia verde que sai dos documentos oficiais da ONU ignora todas estas questões vitais para a sustentabilidade.
O cuidar tem como corolários o conviver e o compartilhar. Para florescer, a economia do cuidado depende da comunidade e das relações de amizade, do conviver e compartilhar que a comunidade propicia. Aí florescem a vida cultural, as festas, o sonho, o imaginário, as crenças que dão sentido e direção ao viver. Na vida social e comunitária, desenvolvem-se a cooperação e o interesse comum pela convivência e pelo compartilhamento. Por isto, são indispensáveis para a comunicação, para a linguagem, para o aprendizado. Os conhecimentos, por sua vez, não existiriam não fosse o compartilhamento. Nada mais absurdo do que uma economia baseada na propriedade intelectual privada, hoje uma grande frente de negócios. A propriedade intelectual de conhecimentos e de cultura privatiza uma dimensão essencial da vida em sociedade.
Cuidar, conviver e compartilhar devem orientar a transformação da economia e do poder, do local ao mundial, para criar bases de sustentabilidade da vida. Não podemos continuar com uma produção que destrói os nossos “comuns” e, no seu rastro, deixa montanhas de lixo e mares poluídos, florestas queimadas e as entranhas da terra violadas pela mineração sem freios. Precisamos renovar e regenerar, trocar com a natureza, respeitá-la, sem ultrapassar a pegada ecológica para a sua integridade e para gerações futuras. Usar preservando é cuidar, conviver e compartir, entre nós e com a humanidade inteira, de hoje e de amanhã.
Como desmascarar as negociações oficiais se nada disto será tratado na Conferência da ONU? O desafio é grande para organizações de cidadania ativa, movimentos sociais, redes e fóruns da sociedade civil. O fato é que não podemos esperar mais. Cada um pode fazer a sua parte. A resistência e a ofensiva cidadã sempre fazem a diferença, nas piores condições possíveis. Juntemo-nos a todos os grupos espalhados pelo mundo que ousam dizer que outro mundo é possível.
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