III – Ética do compartilhamento e da convivência como correlatos do cuidado
Cândido Grzybowski
Sociólogo, presidente do Conselho de Governança do Ibase
São muitas as questões que se levantam a partir da ética do cuidado no centro da economia. Destaco em particular dois princípios, o de compartilhamento e o de convivência, sem o que o cuidado não pode se tornar lógica estruturante de uma nova economia.
Tomar o cuidado como referência é reconhecer que viver é fazer parte de uma teia de interdependências entre seres vivos de todas as espécies e destes com a biosfera. Viver é sempre compartir, ser parte de tal teia. Como invenção humana, a economia nasceu essencialmente como gestão desta interdependência na troca com os outros seres vivos e a natureza. O cuidado compartido entre os diferentes seres vivos é condição indispensável para que a própria teia de interdependências da vida seja sustentável. A começar pela procriação, ato compartilhado, uma espécie de imperativo da vida. Mas quanta barbárie entre nós humanos pode acontecer já aí, no processo de garantir a continuidade da vida. Para procriar compartimos entre sexos. Para florescer a vida exige cuidado e compartilhamento em toda a teia em que se insere na família, na comunidade, na sociedade. Não é demais lembrar aqui que a gente inventou o patriarcalismo, do domínio dos homens sobre as mulheres, e tudo o que isso representa como dominação no modo de gestão do cuidado com a vida no seio das famílias. Nasce aí, com o patriarcalismo, a dissociação entre cuidado e compartilhamento do trabalho, bem como a ruptura entre cuidado e economia utilitária privada, de exploração entre seres humanos.
O cuidar da vida pressupõe, ao mesmo tempo, o compartilhar tudo o que a biosfera nos dá, o que produzimos e o que é imprescindível para ela existir. Exige, portanto, que tanto o trabalho do cuidado como os frutos do trabalho em geral sejam compartilhados, com toda radicalidade que isto implica. A economia do cuidado traz em si mesmo a necessidade do compartilhamento. Isso serve para tudo o que se faz e produz, em termos de bens e serviços, como tudo mais: a vida em família, a comunidade mais próxima, a vivência social, a cultura, o saber, a renda, o poder, a sociedade com seus comuns, enfim. Somos seres de compartilhamento, entre nós mesmos, de nós com todos os seres vivos que nos dão alimento (inclusive os que nos ameaçam). Compartimos línguas que nos unem e a atmosfera que nos fornece a energia do oxigênio. Compartimos a água bem comum de toda vida, suas chuvas e secas, seus rios e mares. Compartimos o planeta Terra. Mesmo o funcionamento da economia capitalista, que visa acumular riqueza, se baseia num mínimo de compartilhamento através do mercado, pela troca e pelo consumo, sem o que ela deixa de operar. Isso dá a dimensão da questão do compartilhamento como princípio complementar do cuidado e da sustentabilidade da vida e do nosso próprio planeta.
O princípio ético da convivência é um correlato que se integra ao cuidado e ao compartilhamento na base da vida e, portanto, da economia. A convivência ou o conviver, enquanto valor e princípio ético, por um lado, e como prática efetiva, por outro, é condição das relações sociais, processos e estruturas das sociedades. A convivência precisa ainda ser reconhecida e valorizada como fundamental para o grande tecido de interdependências em que assentam a biosfera e os sistemas ecológicos que definem a integridade da dinâmica natural do Planeta. Mas interessa aqui tomar a convivência como princípio integrante de um novo paradigma econômico, social, cultural e político, de uma nova narrativa para transformar o que nos é imposto hoje como sistema e modelo de desenvolvimento capitalista, como modo de nos organizar e viver.
A convivência é condição para dar conta da diversidade intrínseca à teia de interdependências do viver na troca com a natureza e no modo de operar das sociedades. Acontece que inventamos formas forçadas e negadoras da diversidade. O hoje dominante agronegócio destruiu a convivência com a biodiversidade que está na origem da agricultura e da fantástica diversidade da cultura alimentar no mundo. O agronegócio concentra grandes áreas de terra, desmata e impõe plantios e criações homogêneas, “matando” duplamente a biodiversidade: tanto aquela nas florestas e seu papel na regulação do ciclo da água e do clima, como de plantas cultivadas e animais criados. Tudo com muito agrotóxico, para tentar proteger o “negócio” da força da biodiversidade teimosa em viver apesar das agressões. O agronegócio homogeneizador produz desertos verdes de pasto para bois, eucalipto, algodão, cana, soja, milho, o café. Ele ameaça os comuns, tanto a água, como os territórios de povos tradicionais, sejam indígenas ou ribeirinhos, posseiros, grupos extrativistas de frutos da floresta, quilombolas. Na esteira do agronegócio temos a “macdonaldização” do alimento. Esse é um exemplo como a indispensável convivência entre seres humanos e todas as formas de vida é ignorada socialmente.
Sendo a diversidade um modo de ser da vida e a convivência o elo integrador da teia da existência, como justificar o racismo e a segregação, a intolerância e o ódio, a exploração de uns pelos outros, a dominação de classes ou a conquista e dominação de povos inteiros ao redor do planeta? Tudo isto representa negação da convivência e imposição de modos destrutivos do próprio sentido de fazer parte da humanidade e da biosfera. Conviver é reconhecer igualdade na diversidade e na diferença. Ou, de outro modo, conviver é viver na diversidade e diferença com sentido de igualdade. Temos diferenças entre mulheres e homens, entre crianças, jovens, adultos e idosos, entre sadios e doentes, diferenças étnicas e raciais, religiosas, linguísticas e culturais. Tudo isso é vida! Tudo isso supõe cuidado, compartilhamento e convivência.