Cândido Grzybowski
Sociólogo, presidente do Conselho Curador do Ibase
Diante do desmonte em curso que vivemos no Brasil, a tarefa da reconstrução democrática será árdua e longa, exigindo ousadia e determinação. Não é inevitável e nem está logo ali, mas é possível, desde que acreditemos e apostemos na capacidade da cidadania, como força instituinte e constituinte, em sua viabilização. Não adianta esperar algo das disputas de poder causadoras da atual situação, das forças de direitas aliadas na promoção de soluções autoritárias e fascistas para o país com as forças de esquerda fragmentadas e saudosistas de seu “reformismo conservador”.
Como seres humanos, vivemos em territórios locais, nossos lugares muito concretos, com o qual associamos identidade e sentimentos, com gente e sua extraordinária e maravilhosa diversidade, relações, espaços, ritmos e cultura de um jeito que dá especificidade, gostinho especial e força, sol e clima, contornos físicos e paisagens, pores de sol e da lua só nossos. Democracia, como invenção humana de respeito radical à igualdade e compartilhamento disso como comuns que nos dão condições de viver, começa aí e é daí que pode extrair sua vitalidade. E isto tem um nome: o cotidiano do viver.
Ao olhar, tomar consciência, analisar, valorizar, potencializar e politizar o cotidiano, como espaço vivo e histórico nosso, trazemos a democracia para as suas raízes vitais. Simplesmente porque é só aí que, de forma radical, podemos nos reconhecer como iguais em direitos e responsabilidades e como diversos, pois a vida é diversa. Filosófica e sociologicamente, a consciência e prática de cidadania têm este substrato territorial, social e político: o local em que vivemos, como ele é, suas fortalezas, debilidades, problemas e desafios, mas nosso local, nosso território comum, nossa cidadania como condição e como possibilidade na relação com ele.
Por que trago tal reflexão para a minha crônica desta semana? Porque o cotidiano compartido é a base da sociabilidade e é nela que reside o potencial da política democrática transformadora a ser reinventada. Sofremos um enorme esgarçamento social nos últimos anos, no sentido de rupturas de relações sociais, convivências e compartilhamento no cotidiano. Claro, não só isso, pois mudou radicalmente o poder político estatal no Brasil. Todos nossos olhares se voltam ao “planalto” do poder e deixamos de lado ou quase o que se passa na “planície” do nosso cotidiano de radicais mudanças, desencontros, carências, rupturas. A polarização política parece dominar tudo e não deixar espaço para nada. Enquanto isso, desconfiança, medo, tensão, silêncios, enfim, rupturas e vazios invadiram lares, ruas, espaços públicos, meios de transporte, locais de trabalho, associações, espaços culturais e religiosos. Estamos vivendo desconfiando uns e umas de outros e outras.
O viver é uma espécie de múltiplos entrelaçamentos que são experiência individual e social, ao mesmo tempo. Nossa individualidade, um direito conquistado como marca civilizatória, é uma relação que depende do reconhecimento de direito igual de individualidade dos demais, com quem convivemos de algum modo. Nesse sentido, não podemos ter nossa vida sem interagir com os demais, no tempo histórico único de cada um e uma. Tomar consciência deste fato estruturante da vida é um ato de cidadania, do sentir-se membro da coletividade, em círculos que vão se ampliando de local até o mundial. Hoje temos a possibilidade de nos sentirmos e vivermos como cidadãos e cidadãs do Planeta Terra, em igualdade de direitos, respeitada a nossa diversidade de múltiplas formas. Mas quanta desigualdade intra e entre povos, quanta intolerância, fundamentalismo e racismo, quanta violência, quanta dominação! Por quê?
Mas, voltemos ao cotidiano nosso, onde a nossa atitude e ação podem fazer enorme diferença e promover mudanças nisto tudo. Claro, ao nosso modo específico no Brasil, temos um “clima” esdrúxulo, com o capitão destrambelhado e seus “zeros”, o “guru terraplanista”, o “posto Ipiranga” e mais aquela composição estranha de ministros militares e civis tomando conta do poder estatal, sem falar dos “bandos” dominantes no Congresso e de um Judiciário que se sente acima das próprias leis que deveria garantir o cumprimento. E temos os oportunistas calhordas dos bancos, grandes empresas e do agronegócio que só zelam pelos lucros. E, sim, temos violência que ameaça a convivência entre todos. Nosso cotidiano é invadido por notícias que geram tensão, preocupação e até desânimo. Mas estamos aí, cada um e uma a seu modo vai tocando a vida, com dificuldades inimagináveis, seja diante das muitas “faltas”, como nos sacrifícios nas longas horas para ir e vir, no trabalho duro e majoritariamente precário, na escola de medos que contaminam a prática da liberdade e do aprender a pensar e tudo mais.
O fato é que o desafio fundamental para reconstrução democrática passa por voltar a olhar o cotidiano e politizar o cotidiano no que tem de comum para a cidadania. É uma espécie de redescoberta de práticas de micropolítica, por assim dizer, de tomada de consciência da cidadania vivida e como garantir mais direitos. Isto tem particular importância pelo que vem por aí com os processos de eleições locais e de reconstrução de poderes e políticas que atendam a direitos, que apontem novas possibilidades. A democracia no Brasil, para ter sentido, só pode ser reconstruída a partir do local, dos territórios de cidadania, seus dramas, sonhos e demandas por mais democracia.