Pedro Cláudio Cunca Bocayuva
Professor do PPDH do NEPP-DH/UFRJ

Basta ligar a televisão para assistir à degradação da política. Lá está o cenário parlamentar brasileiro sob a forma de sua espetacularização, através do jogo de cena das querelas entre os três poderes. Trata-se de um fenômeno mórbido conhecido como “pequena política”, conceituado pelo intelectual comunista italiano Antonio Gramsci. Ele examinou o quanto o processo parlamentar servia para substituir e bloquear a emergência das grandes questões nacionais e internacionais na cena pública. Assim, a “grande política” seria aquela ligada ao processo de formação das políticas voltadas para o Estado, com destaque para a função dos partidos e da constituição de blocos de força que projetam uma direção hegemônica para a vida social nacional.
Ao tomar o pequeno interesse pela obtenção de posição, vantagem e cargo, como se isso fosse a função parlamentar, os fenômenos que afetam a população deixam de ser prioridade. Canais de mediação e forças de articulação de lógicas corporativas e bancadas do tipo “bala, boi e bíblia” acabam dando o tom da vida parlamentar. O desencontro e a disputa de lideranças definem perfis. As lideranças são um conjunto de manobras nas sombras, onde se travam acordos sobre as grandes empreitadas e as projeções de lucros. Personagens sombrias e discursos reacionários sensibilizam os descontentes com a presença de novos atores na vida brasileira: os de “outra cor”, de “outro sexo”, que aparecem nos bancos das universidades, nos aviões, nos mesmos restaurantes e outros espaços antes exclusivos.
É urgente, portanto, examinar a crise da democracia representativa sob a noção de pequena política, de banalização da política, e seus efeitos fenômenos mórbidos, sob a perspectiva da naturalização que busca silenciar o clamor das multidões e dos movimentos de rua e do campo por meio da formação de plateias para o “BBB” das (pseudo)lutas parlamentares e dos julgamentos e das ações policiais. 
Crise de representação
A luta interna pelo poder no Estado – no Governo e no Parlamento – ganha destaque e substitui a política real, definida pelas classes fundamentais e pelas disputas entre forças e blocos sociais. A pequena política acaba absorvendo a energia e os campos visual e semântico da vida parlamentar, bloqueando a reflexão política a partir de processos de mobilização coletiva. Ela também dificulta uma pedagogia política democrática, capaz de lidar com outras demandas, como redirecionar o senso comum e a opinião pública em favor de grupos e classes subalternas. O pouco alcance da reforma política indica que a disposição crítica e a função informativa da mídia aceita rapidamente os resultados pífios, ao gosto do processo que reafirma o deserto do real sob a forma do “virar pizza”, ou da redução ao recorte unidirecional da Lava Jato.
E o que se ganha, afinal, com a continuidade dos mesmos fenômenos mórbidos – do pequeno jogo de trituração, bloqueio e traições – no espetáculo midiático cotidiano, onde o Congresso Nacional aparece como a caricatura de si mesmo? A repetição grotesca e variada desse triste espetáculo disfarça e esconde o vazio e a falta de substância política, encobrindo o verdadeiro jogo de poder. Isso favorece o surgimento de personagens cuja habilidade é alimentar uma máquina de cinismo e hipocrisia. A agenda da via única se impõe apoiada nas formas jurídicas e no discurso da ordem.
O ajuste como solução técnica permanente destitui o social ao tornar a política um caso de polícia, que se desdobra na criminalização do protesto que atrapalha o trânsito e causa dano ao patrimônio. O fim da roubalheira e da baderna serve de pretexto para uma selvageria brutal que alimenta a barbárie penal e carcerária e o genocídio social no Brasil. O poder disciplinar do capitalismo global e as notas das agências de risco vão nos rebaixando, aumentando exigências e juros, para nos punir pelo excesso de gastos do ciclo anterior, como se eles nada tivessem ganhado com a festa dos megaeventos e a farra das commodities.
As guerras de desgaste, lutas parlamentares por cargos, se repetem como uma comédia que, supostamente, representa a política tal qual ela é. A crise de legitimidade do Poder Legislativo é tanta que faz transbordar poder para outros espaços e agentes, dentro e fora do Estado, que acompanham o processo e a lógica que reafirmam o poder disciplinar e as tecnologias do poder punitivo como forma dominante de responder aos desmandos e ao triste espetáculo em que brilham figuras como o deputado Eduardo Cunha. Em que pese a fraqueza e os recuos da presidente, seus adversários são fruto de ardis e manobras, ou personagens que combinam inocuidade política e ausência completa de conteúdo.
Apesar das manifestações do Movimento Passe Livre e do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, caminhamos na direção de regimes de segurança e ajuste que aprofundam a sociedade do endividamento, do desastre ambiental, da crueldade e do medo, sustentados pela suposição de que o Parlamento é a imagem e o reflexo ampliado do povo que o elegeu. A alternativa a isso é o espetáculo judicial-punitivo que seleciona pseudemocraticamente os que não devem ser punidos: empresários e políticos que conservam monopólios patrimoniais, midiáticos, de renda e de poder. O mal-estar cresce e alimenta o conflito na sociedade civil, a crise orgânica se manifesta com imagens perturbadoras de irracionalidade e preconceito. A máquina governamental fica paralisada, impedida de realizar os gastos básicos e devedora dos grandes negócios e de falsas expectativas, como a da megalomania do pré-sal.
Imagem-corpo do espetáculo
O fenômeno político e a crise da representação no Brasil vêm destruindo a descrição clássica da política como um teatro, com um palco e um cenário, com certas regras, técnicas e modos de representação, abrindo uma bifurcação, gerando a guerra de todos contra todos ou processos de morte continuada dos valores. A repetição dos mesmos processos que definem a política pela imagem dos políticos se repete e atinge de um só golpe o corpo-imagem dos escolhidos pelo sufrágio universal e os aparelhos partidários, tornando “natural” o desgaste do sentido público da função de representação.
O senso comum da política serve-se da confirmação contínua da morbidez e da nulidade do processo parlamentar, em que a pequena intriga, o pequeno interesse e o personalismo servem de suporte para naturalizar o fracasso da política, golpeando a democracia representativa. Esse processo, em vez de produzir uma resposta na direção da autonomia ou da representação direta da sociedade, ou mesmo dos mecanismos de controle e participação popular, se direciona para um fetichismo jurídico pela lógica da solução penal, que aparece como solução disciplinadora e pseudoigualitária, já que os ricos também iriam para a cadeia. No discurso, a punição se democratiza e finalmente poderemos nos vangloriar de nossas instituições.
O mecanismo da solução penal encobre, pela via das formas jurídicas e legais, a estrutura social da injustiça, acentuando a coerção e a submissão da vida social ao regime dos monopólios e aos processos e regras que nos ajustam, via processos de subjetivação coletiva e de universalização da culpa, requisito necessário para organizar a sociedade global dos endividados. O processo é complexo e permite certos deslocamentos e novos alinhamentos no plano internacional, mas as perdas dos países do Brics, em especial do Brasil, são visíveis. Os desdobramentos da eleição americana aparecem como única brecha de descontentamento substantivo visível neste início de 2016.
Somos todos devedores e culpados nos planos global e local. Por isso nos conformamos e gostamos de assistir a uma pseudojustiça ao ver políticos, artistas, personalidades, empresários enviados aos “paredões”, digo, aos tribunais e prisões. Ao transferir o interesse comum da órbita da representação e da vida parlamentar para a esfera de uma suposta “verdade jurídica”, articulada com operações policiais, a criminalização assume ares de produtora da verdade. A ideia de dignidade e valor moral se transfere via imagem-espetáculo para o judiciário. Os efeitos da judiciarização da política são alimentados pelas redes e máquinas imagéticas, que se proliferam com a radicalização da pequena política, por força do espaço limitado e das lógicas globais e corporativas. A base de sustentação do governo e a oposição não fazem mais do que jogos de protelação e autofagia, numa disputa diária por cinturões, como no MMA.
Os campeões de hoje são acusados de uso indevido de substâncias químicas, não passando nos exames antidoping do dia seguinte. O poder judiciário e a lógica midiática se complementam como cimento ideológico que não precisa conspirar para colher frutos da crise permanente. A espada está todo o tempo nas mãos dos juízes e sobre a cabeça dos fracos, que perdem o poder de falar e encantar. A linguagem jurídica mais uma vez se faz instrumento decisivo – os juízes encarnam e enterram a força do legislador, cindindo e decidindo o destino de um Executivo fraco e paralisado.
O deslocamento e a judiciarização
Pela via darwinista, o poder vai eliminando certos indivíduos de certas espécies. As vítimas sofrem pela passagem compulsiva e repetitiva do ato ilícito, que acaba levando aos mesmos erros que rapidamente liquidam os recém-chegados ao poder. Pequenos grandes acordos, reconhecimentos de culpa, delações premiadas, abuso de prisões e restrições se legitimam, numa ciranda infernal de operações, repletas de episódios e temporadas. A produção do espetáculo jurídico-policial esvazia o debate sobre a reforma política e a reforma do Estado (que deveria se realizar pela via da democratização). O descontentamento da opinião pública se satisfaz com a perspectiva de novas leis punitivas, principalmente contra a juventude, as periferias, os grupos oprimidos e os subalternos, cujos direitos começavam a ser reconhecidos no ciclo político anterior.
Os discursos da ordem e do autoritarismo se repetem e integram a retórica dos mesmos que negam ter contas no exterior. O interessante é que as contas e os fluxos, desde a CPI do Banestado, indicam um caminho simples: não bastaria seguir a regra clássica do “siga o dinheiro” para nos depararmos com “a coisa”? Talvez nos paraísos fiscais se encontre a chave do falso segredo.
Nosso “Law and Order” cotidiano da pequena política e do cretinismo parlamentar quer nos convencer de duas coisas: que a crise política nasce da falta de ética dos políticos e que a grande política passa a ser um atributo do juiz, e não do legislador. O Executivo se paralisa ao perder a iniciativa de compor ou “comprar” apoio. No pântano do Parlamento é preciso fazer parte de um grupo ou bloco suprapartidário ou do campo de alguma suposta maioria para sobreviver. Se o Congresso deveria ser o lugar da produção do consenso ou dos grandes acordos, na nova conjuntura da representação e espetacularização temos uma passagem ao modo conservador e subordinado, do poder disciplinar ligado ao paradigma neoliberal na fase do endividamento, do ajustamento e da ordem nas fronteiras de contenção dos destituídos de todos os tipos.
O resultado geral da crise de representação é um reforço do “neoliberalismo disciplinar” nos países da periferia e da semiperiferia capitalista. Nos países centrais a agenda é de guerra, com o controle das fronteiras, o reforço da exceção e as medidas de emergência, que também já fazem parte de processos conhecidos em países como o Brasil e a Colômbia, com suas guerras internas de vários tipos.
Nos curiosos caminhos da dialética, os jogos imagéticos se transformam em performances e videoclipes transmitidos diretamente em reality shows. Temo a profusão de vídeos de detenções, de interrogatórios, de inquéritos, de processos, de julgamentos – os episódios se sucedem nesse novo espaço do real virtual, tornando quase compensador assistir às temporadas que legitimam a criminalização, a judiciarização, a tortura e a eliminação dos ladrões e inimigos. O Congresso Nacional e os partidos se tornam palco dessa pós-teatralização da política como ficção policial e judiciária. A velocidade e a presença constante da imagem e do discurso do castigo, da punição, definem o padrão moral e o capital simbólico que desqualificam a política e o legislador. Nesse ambiente, a desconfiança e a traição são a moeda de troca e a delação é o modo principal de lidar com o medo e produzir a prova. Todos devemos alguma coisa diante do Big Brother cibernético e os políticos um pouco mais, visto o “mar de lama” permanente que se repete no país. Assim, o “consenso” de que “todos os políticos são ladrões” explica, de forma simplória, todo o processo.
Jornalistas, cientistas, juristas e policiais trazem suas explicações e seu saberes, repetindo a mesma narrativa que acompanha, confirma e legitima o senso comum da pequena política, das soluções e querelas que acompanham as tendências. O pão e circo contemporâneo dista muito das disputas que afetaram a República Romana. Monarquias absolutas e repúblicas modernas se sustentaram nas suas racionalidades burocráticas pelo poder patrimonial e fiscal, pelo uso legítimo da força como exceção soberana sobre inimigos internos e externos. O fantasma da democracia direta sempre faz mover e tencionar as regras do jogo do poder representativo e dos modos de distribuição e equilíbrio entre os poderes que incidem sobre diferentes etapas do processo decisório.
Os lugares que pareciam investidos de poder se voltam sobre os que penam para ter uma real representação. Os parlamentares e os operadores políticos se revelam o elo mais fraco da cadeia do poder político, oferecendo suas pequenas batalhas, artimanhas e segredos para uma espécie de BBB permanente. Ministros, partidos e empreiteiros se enredam entre realizar, cartelizar e distribuir recursos públicos, sendo eles mesmos o elo mais frágil do poder e da decisão real, que vai muito além do patrimônio líquido e financeiro, ou da força de influência e aparelhamento que pensavam possuir. Esse poder do aparelhamento e das lógicas e máquinas territoriais é condicionado e amarrado por uma combinação de formas financeiras e comunicacionais de comando de informação, fluxos e vetores imagéticos mundializados.
Conclusão
O poder do capital simbólico no Brasil, que historicamente se legitima na proteção do patrimônio e dos privilégios, usa a lei para tornar o social um caso de polícia. Mas hoje se aprimora o poder simbólico comunicativo, que consegue se alimentar da fraqueza dos pequenos atores que fazem o grande espetáculo oferecido nas telas. O poder midiático se revela na capacidade de condensar a ideia de política no jogo parlamentar e no corpo-imagem dos políticos, que são vítimas de seu próprio engano e se arriscam e se oferecem ao triste espetáculo que afasta a vida representativa do corpo representado, repetindo como farsa a tragédia que acometeu a liberal-democracia nos anos 1920 e 1930 nos países da Europa Ocidental.
A minimalização da política e sua criminalização servem para esvaziar e bloquear o avanço da democratização, nos colocando nas arquibancadas desse espetáculo degradante. Ao dar atenção às pequenas personagens, deixamos de ver o contexto e os aparatos de fabricação do poder, cuja percepção poderia nos retirar da captura ideológica, que, supostamente, é de nossa responsabilidade, já que teríamos escolhido mal nossos representantes. O fim do ciclo político dos governos do PT poderia seguir outra direção, se pudéssemos desvendar melhor o enigma da imagem-espetáculo da degradação da política?
As formas de subjetivação reforçam a razão cínica que produz a culpa coletiva, o que nos envolve numa dinâmica de violência material e simbólica. A pequena política serve a essa intensidade do excesso negativo que acomete o social, o ambiental e o subjetivo, que torna a crueldade uma noção central para entendermos os modos de dividir a sociedade e de gerar certo gozo compensatório com “a derrota dos outros”. Como sempre, é preciso romper com a dialética da guerra de todos contra todos como manifestação geral da política que nos é imposta pela via de sua negação.
Mudar o poder exige a mudança nas formas da política, com atenção especial ao processo de disputa pedagógico-política do poder de elaboração e formação do espetáculo como imagem-corpo do exercício das práticas sociais alternativas nascidas da nova centralidade da periferia, retomar certa capacidade de definir a cena como teatro alternativo ao reality show e ao modo e convergência entre ficção e realidade, que atualmente retira dos atores a possibilidade de definir outra trama. A questão da democracia e da representação nos desafia a produzir outro enredo, outra narrativa e outra agenda, numa verdadeira cena política de caráter público, resgatando o poder constituinte presente nos artigos da Carta de 1988.
Este artigo integra a 4ª edição de Trincheiras, a revista de cidadania ativa do Ibase. Acesse, leia, comente.
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